quarta-feira, 9 de abril de 2014

A formiga e o gafanhoto

         


Era uma vez uma formiga que trabalhava duro ao sol escaldante dos verões. Construía sua toca e acumulava suprimentos para os longos invernos que inexoravelmente se sucediam.

O gafanhoto, presenciando aquela constante repetição, remoía consigo:

− Que idiota ela é!

Por sua vez, passava os verões a consumir os tenros talos dos trigais silvestres, cantando, dançando, estufando-se, engordando a mais não poder. E a formiga a arrastar, para sua toca, folhas enormes para seu tamanho, a cansar-se com o trajeto cada vez mais extenso do carreiro estreito. 

Terminado o verão, o celeiro da formiga sempre se encontrava abastecido. Na escuridão das noites de inverno, o frio se tornava cada vez mais intenso. Desabrigado e surpreendido com a falta de seus talos, o gafanhoto emagrecia e, para não morrer de fome, esquecia o orgulho e, desprezando a auto-estima, batia à toca da formiga. Rogava-lhe, por caridade, as migalhas da farta mesa.

− Eu colhi, eu trabalhei. A propriedade é minha. Vai, dança agora. Rói os troncos que desbastaste.

− Trabalhar já não posso, tenho vergonha, e forças me faltam.

Ao descaso da formiga, o gafanhoto, com o que lhe restava de ânimo, armava uma barraca de lona preta frente à toca e, em sinal de protesto, hasteava um trapo de bandeira. Acorria a imprensa, acorriam as ONG’s, acorriam os políticos do povo que enchiam o gafanhoto de promessas.

Passava o tempo e nada. Desiludido, aconselhava-se com o espírito da inveja. Num momento de descuido da formiga, entrava na toca e ocupava o depósito de mantimentos.

A formiga, por seu lado, tentando e não conseguindo demovê-lo nem com argumentos de que a propriedade particular é sagrada, nem por meio das forças públicas, utilizava um inovador sistema jurídico, confundindo o gafanhoto com o “hábeas rerum” e, de uma patada, jogava-o para fora da toca.

Para que a história tivesse continuidade, o destino sempre providenciava a primavera. Assim, aos verões sucediam os invernos. A monotonia da repetição desse ciclo já cansara a imprensa, afugentara as ONG’s, e até desinteressara os políticos apoiadores.

Num belo ano, o gafanhoto também percebeu que o futuro não lhe estava assegurado e que a estratégia do espírito era de um amador. Assessorou-se, então, de um lúcifer mais esperto.

A formiga é muito metódica, matutou consigo o orientado gafanhoto em suas análises diacrônicas, e pouco razoável. Nos verões só pensa em trabalhar, trabalhar, apanhar as mesmas folhas verdes das searas dos homens, ir e vir pelos mesmos carreiros, acumular, acumular, comunicar-se com aquelas antigas antenas, já ultrapassadas, de pouco alcance. Não reserva nunca um momento sequer para o canto, para a dança: não aproveita o calor do ócio, nem o refrigério das fontes. Que se confirme, enfim, seu destino.

Ao cair de uma tarde morna, entre cantorias e gargalhadas com representante do Poder, o gafanhoto sugeriu que se instalassem algumas torres ao longo dos caminhos, no intuito de captar os propósitos e as vibrações da formiga.

As torres não apresentaram o resultado desejado, mas, por ocuparem o espaço aéreo público, deram motivos para retomada dos serviços pelo governo populista. As folhas verdes dos campos externos, no entanto, sofreram cobrança de royalties, e altos impostos de importação.

O mundo se globalizava; era necessário adaptar-se aos novos tempos, limpar os caminhos, melhorar e expandir as comunicações. Chegara a era da gerência de sistemas que, embasada na economia de mercado e apoiada na Teologia da Prosperidade - para não assustar o fundamentalismo econômico -, tornaria mais leve o Estado. O novo conceito do trabalho consistiria na geração de idéias e na capacidade empresarial.

Na base de acertos, a poucos foram distribuídos editais de privatizações dos carreiros, dos portos, dos produtos conservantes para as folhas verdes e das comunicações que tinham se tornado uma confusão de babel. Foram estabelecidas exigências pesadas, muito do agrado da mídia e dos interesses transacionais. Por elas, licitante algum, que não soubesse cantar, dançar ou não tivesse experiência e estrutura semelhante ao do gafanhoto, se aventuraria a participar da concorrência.

Tão simples ideia demorara tanto – que idiota também tinha sido - agora o gafanhoto é o único concessionário dos serviços no reino do bicharedo. Um novo PPPP (Programa de Parceria Pública-Privada) fora implantado, com direção total do gafanhoto, a quem estão destinados os resultados do equilíbrio econômico-financeiro, assegurado pelo financiamento oficial.

Os carreiros, que eram livres, estão barrados com pedágio. Os portos secos, destinados à transferência das folhas verdes, requerem custosas guias de liberação. O cultivo da seara dos homens está restrito aos transgênicos. Os silos, adaptados às modernas técnicas de conservação de folhas verdes modificadas, cobram taxa de permanência e de consumo de energia. A comunicação, abandonando as velhas antenas analógicas, apresenta cobertura geral digitalizada, a preços dolarizados.

De início, esses serviços eram banais, de pouca repercussão econômica; contudo, com o passar do tempo, a necessidade de consumo, propagandeada pela alma dos negócios, os tornou essenciais. E a formiga, que não estudou, que não se atualizou, conserva ainda seu instinto produtivo retrógrado. Vê, dia a dia, o fruto de seu esforço consumir-se e ser transferido para o sistema globalizado. Ela própria é parte da engrenagem, mas lhe asseguram – ó céus! – a liberdade e a obrigação de trabalhar. Pode-se agora, noites adentro, nos telões de plasma, assistir ao sucesso do gafanhoto que pula, canta e dança, porque ele chegou lá. 


(Celito Brugnara)


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