terça-feira, 15 de abril de 2014

A Revolta da Chibata em cordel



João Cândido lendo o manifesto dos marinheiros, em 1910.

01

Grande Deus, mestre e juiz,
Justiça que nunca falta,
Ilumina este teu servo
A quem deste cultura nata,
Com inspiração e saber
Pra que eu possa descrever
A Revolta da Chibata.

02

No Brasil de antigamente
Vivia-se a lei do cão.
O negro pobre não tinha
Direitos de cidadão,
Privilégios não teria,
Conceito ou cidadania,
Liberdade ou posição.

03

Cada negro que nascia,
Já nascia condenado
A ser produtos de venda
E como escravos leiloados.
Bons físicos, boa estatura,
Crescia mais a fatura
Pra os fazendeiros malvados.

04

E a Marinha Brasileira,
Com toda pompa e brancura,
A maior corporação
Em conceito e estrutura
Pegava negros a laços
E nos porões sem embaraços
Mantinha-os em escravatura.

05

E na tão famosa Escola
De Aprendiz de Marinheiros
Os recrutas eram obrigados
A servir três anos inteiros.
Tinham comida pra porcos,
Palmatória, relho e socos
Por castigos costumeiros.

06

E se em qualquer coisa o marujo
Saísse da disciplina,
Tinha como punição
A chibata assassina.
Algemado as duas mão,
                                      E o carrasco entrava em ação
                                      Fazendo a carnificina.

07

Havia o carrasco Alípio
E o Luís Apicuim
Dois monstros encarregados
Para as torturas sem fim,
Que enfiava agulhas de aço
Numa corda de cima embaixo
Pra fazer o tal festim.

08

Em uma vasilha d'água,
A grossa corda embebia
E das agulhas de aço
Somente as pontas se via
E de cada chibatada
Da carne dilacerada
O sangue em bicas corria.

09

Todo castigo era pouco
Para a pobre marujada,
Que muitas vezes doentes
E com as forças debilitadas,
O remédio era o trabalho
E se mostrasse ponto falho
Entrava na chibatada.

10

E por pequenos motivos,
Os marujos eram enquadrados,
Recolhidos nos porões
Como cães envenenados,
Morrendo de sede e fome
Feitos bicho lubizome
E ainda mais algemados.

11

E, quando o infeliz recruta
A sua pena cumpria,
Os oficiais das casernas
Davam carta de alforria,
Porém já com plano sujo
Assassinava o marujo
Que vivo nunca saía.

12

Só no satélite cargueiro,
Depois de ser anistiados,
Centenas de infelizes
Foram brutalmente fuzilados
Já a um passo da liberdade
E partem pra eternidade
Com os pés e mãos algemados.

13

E, num calabouço perdido,
Que na ilha das Cobras havia,
O extermínio de recrutas
Cruelmente acontecia.
Eram assassinados com cal,
Numa catacumba brutal,
E o governo se omitia.

14

E tanto que na Marinha
Ninguém queria ingressar,
Só os desafortunados
Vinham se sujeitar
Preto, pobre ou desvalidos,
Pelas elites esquecidos,
Queriam se aventurar.

15

E isso forçava a Marinha
A usar a lei do cão.
Pegando jovens a laços
Pra sua corporação
E como se fossem cachorros,
Pobres ou pretos dos morros
Entravam pra escravidão.

16

Mas a justiça divina
É reta e nunca nos falta
E, no Rio Grande do Sul,
Segundo a história nos trata,
Num lar de escravos nascia
João Cândido, o herói que haveria
De extinguir a chibata.

17

João Cândido Felisberto
Aos quatorze anos ingressava
Na escola de marinha,
E aos quinze já se engajava
E como um feliz marinheiro
Partiria pro estrangeiro
E já navios comandava.

18

Dotado de inteligência
E humildade sem par,
Aprendeu todos os mistérios
E a convivência com o mar.
Foi um grande sindicalista
O ofício que lhe deu a pista
Das lutas que iria enfrentar.

19

E, viajando pela Europa,
Bons navios a comandar
E nos clamores dos marujos
Não parava de pensar
E foi jurando dia a dia
Que com aquela tirania
Haveria de acabar.

20

E no fundo da Guanabara,
Ao raiar de um novo dia,
Duzentas e cinquenta vezes
A chibata dura descia
No corpo de um marinheiro
Que, com a dor e o desespero,
Desfalecido caía.

21.

E mesmo depois de caído,
A chibata não parou.
João Cândido e a marujada
Estarrecidos ficou
Vendo do pobre coitado
Todo o sangue derramado
E a revolta começou.

22

Outrora, outras revoltas
Houve e todas fracassou,
Porém esta da chibata
João Cândido sendo o mentou [mentor]
Prendeu os oficiais
E do navio Minas Gerais
Todos os canhões disparou

23

E o marechal Hermes da Fonseca
Sua posse festejava,
E João Cândido com a marujada
Outros navios tomava.
Os canhões roncavam fortes
E já feridos e muitas mortes
Nas ruas se amontoava.

24

Dos tiros vinha o clarão,
Qual um dilúvio de prata,
E num ultimato João Cândido
Gritava: abaixo a chibata,
Anistia para os marujos
Ou tem fim o jogo sujo
Ou muita gente se mata!

25

E o presidente conhecendo
Que todos estavam perdidos
Ou atendia aos rebeldes
Ou seriam destruídos.
Ergueu bandeira de paz
E ordena aos oficiais
Atender todos pedidos.

26

E todas as reivindicações
O presidente assinou,
E João e seus companheiros
O poder de fogo cessou,
Os mortos foram sepultados
Os feridos hospitalizados
E tudo se normalizou.

27

Mas, depois de anistiados,
João Cândido e a marujada
A um passo da liberdade
Caíram noutra cilada.
São presos em uma masmorra
E sem ter quem os socorra
Morreram à fome e à pancada.

28

E sós dois marujos escaparam
Da masmorra cavernosa.
João Cândido, já desnutrido,
Contrai a tuberculose,
E em São João de Meriti
Morreu pobre sem o porvir
Da Marinha gloriosa.

29

E hoje só recordação
Deste herói negro ficou.
Que a lei seca da chibata
Junto à Marinha acabou.
Os seus feitos e sua história
Todos guardamos em memória
A sua fibra e valor.

30

Recomendo aos pracinhas
O cuidado e atenção:
De quando entrar pra Marinha
Risque a discriminação,
Guardem toda a história de
Um grande herói sem glória
E exemplo desta Nação.

Jota Rodrigues
Em 16 de outubro de 1948


Desenho de Latuff

João Cândido

Por Ana Paula de Araújo


João Cândido Felisberto nasceu no Rio Grande do Sul, no dia 24 de Junho de 1880. Seus pais eram escravos, ele desde pequeno ele costumava acompanhar seu pai quando este viajava conduzindo o gado.

João Cândido começou sua participação política cedo, aos 13 anos apenas, quando lutou a serviço do governo na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, no ano de 1893. Com 14 anos se alistou no Arsenal de Guerra do Exército e com 15 entrou para a Escola de Aprendizes Marinheiros de Porto Alegre. Cinco anos depois foi promovido a marinheiro de primeira classe e com 21 anos, em 1903, foi promovido a cabo-de-esquadra, tendo sido depois novamente rebaixado a marinheiro de primeira classe por ter introduzido no navio um jogo de baralho. Serviu na Marinha do Brasil por 15 anos, tempo durante o qual viajou por este e outros países.

Participou e comandou a Revolta dos Marinheiros do Rio de Janeiro (Revolta da Chibata) no ano de 1910, movimento que trouxe benefícios aos marinheiros, com o fim dos castigos corporais na Marinha, mas que trouxe prejuízos a João Cândido, que foi expulso e renegado, vindo a trabalhar como timoneiro e carregador em algumas embarcações particulares, sendo depois demitido definitivamente de todos os serviços da Marinha por intervenção de alguns oficiais.

No ano de 1917, ano em que sua primeira esposa faleceu, começou a trabalhar como pescador para sustentar a família, vivendo na miséria até os seus últimos dias de vida. Casou-se novamente, mas sua segunda esposa cometeu suicídio no ano de 1928. Dez anos depois a tragédia voltaria a acontecer, mas desta vez com uma de suas filhas. Ao todo foram três casamentos, tendo o último durado até o fim de sua vida, dia 06 de Dezembro de 1969.

Atuou na política durante toda a sua vida. Durante o governo de Vargas teve contato com o líder da Ação Integralista Brasileira (AIB) e com o Partido Comunista, chegou a ser preso por suspeita de relacionamento com os integrantes da Aliança Liberal e até o fim da sua vida continuou sendo “vigiado” pelas autoridades, sendo acusado de subversivo.

O “Almirante Negro”, como João Cândido ficou conhecido, morreu aos 89 anos e teve ao todo 11 filhos ao longo dos três casamentos. Faleceu na cidade de São João do Meriti, no Rio de Janeiro.


João Cândido - o Almirante Negro, na velhice.

Do Blog InfoEscola



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