Até o final do séc. XIX, a tradição
greco-romana, de um lado, e a tradição judaico-cristã, do outro, eram os dois
pilares em que se apoiava a formação de qualquer pessoa que passasse pela
escola. Estudava-se o Latim e o Grego, e liam-se os autores clássicos - Homero,
Ovídio, Cícero e Virgílio. Além disso, todo mundo, fosse ou não religioso,
conhecia as principais passagens do Velho e do Novo Testamento.
Os personagens da mitologia e as
figuras bíblicas podiam então ser mencionadas, porque pertenciam a um fundo
comum de conhecimento que era reconhecido em todas as nações do Ocidente. Essas
expressões continuam a ser usadas, mas perderam, para a maioria dos leitores,
aquele valor de referência imediata e instantânea que antes possuíam, pois hoje
são poucos os que conhecem a literatura clássica ou têm o hábito de ler a
Bíblia. Ainda são bem conhecidos o episódio da Arca de Noé, ou da luta de Davi
contra Golias, mas certamente nem todos sabem que uma frase sibilina é
aquela que pode ser interpretada de várias maneiras, assim chamada por causa da
linguagem ambígua e cifrada que as sibilas, sacerdotisas de Apolo, usavam nas
suas previsões do futuro. Sem querer substituir a leitura dos bons autores do
passado, apresento abaixo algumas dessas expressões e a história que se esconde
atrás delas.
A espada de Dâmocles: Dizer
que alguém "está sob a espada de Dâmocles" significa que, a qualquer
momento, algo de muito ruim pode acontecer com o pobre coitado. O nome vem de
um certo Dâmocles, que vivia na corte de Siracusa, no século IV A.C. Como
freqüentava o palácio e era amigo do rei, expressava constantemente sua inveja
pelas delícias proporcionadas pelo trono. O rei, para mostrar-lhe o preço que
se paga pelo poder, ofereceu-lhe um requintado banquete, deixando suspensa
sobre a cabeça de Dâmocles uma espada que pendia ameaçadoramente do teto, presa
apenas por um único fio delgado. Com isso, o invejoso cortesão entendeu a
precariedade do poder real, e a expressão passou a simbolizar "um perigo
iminente que paira sobre a vida de alguém". Para quem é soropositivo de
HIV, a ameaça de
que
a AIDS venha a se manifestar é uma verdadeira espada de Dâmocles.
O bode expiatório: Na
tradição bíblica, esse bode fazia parte do ritual pelo qual os hebreus expiavam
suas culpas diante do Senhor. Todos os anos, no Iom Quipur (o Dia do Perdão), o
sacerdote simbolicamente lançava sobre um bode todos os pecados do povo de
Israel e o soltava no deserto, a fim de que os castigos e as maldições caíssem
longe dos fiéis. Exatamente por isso a expressão hoje designa aquele inocente
que é escolhido para levar a culpa do que os outros fizeram. Sempre que há um
escândalo financeiro, logo aparece um pobre bode expiatório...
Cair nos braços de Morfeu:
A expressão
significa "adormecer", e nasce de um pequeno
equívoco mitológico: Morfeu era, na verdade, o deus dos sonhos em que apareciam as formas
humanas; o deus do
sono era seu pai, Hypnos, que dormia eternamente no fundo
de uma caverna silenciosa, cercado de canteiros de papoula, a flor de onde se
extrai o ópio. A confusão, contudo, ficou consagrada há muitos séculos. Quando
o farmacêutico alemão F.W.Setürmer isolou, em 1803, o alcalóide ativo do ópio,
chamou-o morphium, numa alusão a Morfeu. Este nome
foi em seguida mudado para morfina,
recebendo a terminação padrão de outros alcalóides, como a estricnina, a cafeína, a atropina e a cocaína.
O calcanhar de Aquiles: O
nome vem de Aquiles, o grande herói grego na Guerra
de Tróia. Ele era considerado invulnerável porque, ao nascer, tinha sido
mergulhado pela mãe nas águas sagradas do Styx, o rio dos deuses; no entanto,
como ela o tinha segurado pelo calcanhar, esta parte não tocou na água, ficando
desprotegida. É exatamente nesse ponto que Páris, filho do rei de Tróia, acerta
uma flecha envenenada, tornando possível a morte do herói. Usamos a expressão
para designar o ponto em que uma pessoa é realmente vulnerável; durante a Copa,
alguns cronistas disseram que o calcanhar de Aquiles de Ronaldinho era o joelho, frase que deve ter deixado
confuso quem pensou que se tratava apenas de anatomia.
Leito de Procusto: Na
mitologia grega, Procusto era um salteador sanguinário que
obrigava suas vítimas a deitar sobre um sinistro leito de ferro, do qual
nenhuma saía com vida: se elas fossem mais curtas que o leito, estirava-as com
cordas e roldanas; se ultrapassassem as medidas, cortava a parte que sobrava.
Teseu foi ao seu encalço e matou-o, fazendo-o provar seu próprio remédio. A
expressão é usada para qualquer tipo de padrão que seja aplicado à força, sem o
menor respeito por diferenças individuais ou circunstâncias especiais. Na
história da educação, houve momentos em que a escola se converteu num
verdadeiro leito
de Procusto, impondo
a todos os alunos, indistintamente, o mesmo modelo.
O pomo da discórdia: A
lendária Guerra de Troia começou numa festa dos deuses do Olimpo: Éris, a deusa
da Discórdia, que naturalmente não tinha sido convidada, resolveu acabar com a alegria reinante e
lançou por sobre o muro uma linda maçã, toda de ouro, com a inscrição "a mais bela". Como as três deusas mais
poderosas, Hera, Afrodite e Atena, disputavam o troféu, Zeus passou a espinhosa
função de julgar para Páris, filho do rei de Tróia. O príncipe concedeu o
título a Afrodite em troca do amor de Helena, casada com o rei de Esparta. A
rainha fugiu com Páris para Tróia, os gregos marcharam contra os troianos e a
famosa maçã passou a ser conhecida como "o pomo da discórdia" - que hoje indica qualquer
coisa que leve as pessoas a brigar entre si.
Trabalho de Sísifo: Sísifo,
um dos mais astutos personagens da Mitologia Grega, enganou várias vezes o
próprio Zeus, o rei dos deuses. Como castigo, foi condenado, quando morreu, a
rolar uma pesada pedra até o pico de uma das montanhas mais altas dos Infernos.
O detalhe torturante é que esta pedra tinha um peso calculado de tal forma que,
a poucos metros do cume, faltavam forças a Sísifo e a pedra rolava encosta
abaixo, começando tudo outra vez, pela eternidade. A expressão hoje designa
qualquer trabalho que pareça interminável; por exemplo, manter o quarto em
ordem é um verdadeiro
trabalho de Sísifo,
pois ele começa a desarrumar-se assim que voltamos as costas.
Quintos dos infernos: essa é
realmente uma expressão meio misteriosa; há muitas hipóteses para sua origem,
mas nenhuma chega a me convencer totalmente. Uma corrente (com variantes, é
claro) associa o termo quintos ao imposto de 20% cobrados pela coroa
portuguesa sobre todo o ouro fundido no Brasil. Falava-se em quintos mais ou
menos como hoje ainda se fala em décimas, no sentido tributário. Em Parati, por
exemplo, até hoje existe a velha Casa dos Quintos. O navio que levava a Lisboa
o produto dessa arrecadação era a nau dos quintos; por causa da antipatia que
os brasileiros sentiam por esse tributo, teria sido agregada a locução
"dos infernos", ficando então completa a expressão.
Outra corrente volta-se para Quintos,
uma das freguesias de Beja, em Portugal. Como estava situada, na Idade Média, no
limite do território português, a localidade era alvo constante das investidas
dos chefes árabes que dominavam grande parte da Península Ibérica, o que
tornava infernal a vida nessas paragens. Daí teria vindo o hábito de arrenegar
os desafetos e inimigos, mandando-os para "os Quintos dos infernos".
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