domingo, 20 de abril de 2014

Amor é isso

(Condensado de um conto de Leon Tolstoi)


Em certa cidade morava um sapateiro, chamado Martin Avdéich. Tinha um quartinho num porão, com uma janela que dava para a rua. Por ela, ele só podia ver os pés de quem passava, mas Martin reconhecia muitas pessoas pelas botinas que consertara. Tinha muito serviço, pois trabalhava bem, usava material de boa qualidade e não cobrava caro.

Anos antes, sua mulher e seus filhos haviam morrido, e o desespero de Martin fora tão grande que ele chegara a exprobrar a Deus. Então um dia apareceu um velho da aldeia natal de Martin, que se tornara peregrino e homem santo. Martin desabafou com ele.

“Já não tenho desejo de viver”, disse ele. “Já não tenho esperanças.” O velho respondeu: “Você está desesperado porque deseja viver para sua própria felicidade. Leia os Evangelhos: lá verá como Deus gostaria que você vivesse.”

Martin comprou uma Bíblia. A princípio, só pretendia ler nos dias santos, mas, depois que começou, seu coração ficou tão leve que ele leu todos os dias.

Foi assim que uma noite, bem tarde, no Evangelho de São Lucas, Martin chegou ao trecho em que um fariseu rico convidou o Senhor para ir à sua casa. Uma mulher, que era pecadora, chegou e ungiu os pés do Senhor e os lavou com suas lágrimas. Disse o Senhor ao fariseu:

“Vês esta mulher? Entrei em tua casa, não me deste água para os pés; mas esta, com as suas lágrimas, regou os meus pés, e os enxugou com seus cabelos... Não ungiste a minha cabeça com bálsamo: e esta com bálsamo ungiu os meus pés.” (Lucas 7:44-46.)

Martin ficou pensando. “Ele deve ter sido parecido comigo, aquele fariseu. Se o Senhor viesse ter comigo, eu procederia assim?” Depois deitou a cabeça sobre os braços e adormeceu.

De repente, ouviu uma voz e acordou sobressaltado. Não havia ninguém ali, mas ele ouviu claramente: “Martin! Olha para a rua amanhã, pois Eu virei.”

Na manhã seguinte, Martin levantou-se antes do raiar do dia, acendeu o fogo e preparou sua sopa de repolho e seu mingau. Depois vestiu o avental e sentou-se junto à janela, para trabalhar. Pensando na noite da véspera, olhava mais para a rua do que trabalhava. Sempre que passava alguém com botinas desconhecidas, ele olhava para cima, para ver o rosto. Passou um porteiro de casa, depois um carregador de água. Dali a pouco um velho chamado Stepánich, que trabalhava para um comerciante vizinho, começou a limpar a neve defronte da janela de Martin. Este olhou para ele e continuou a trabalhar.

Depois de ter dado uma dúzia de pontos, tornou a olhar para fora. Stepánich tinha encostado a pá na parede e ou estava descansando, ou procurando aquecer-se. Martin foi até a porta e chamou-o “Entre”, disse ele, “e se aqueça um pouco. Deve estar com frio.”

“Deus te abençoe!“ respondeu Stepánich, e entrou, sacudindo a neve e limpando os pés. Nisto, cambaleou e quase caiu.

“Não se incomode”, disse Martin. “Sente-se e tome um pouco de chá.”

Enchendo dois copos, ele passou um ao seu visitante. Stepánich esvaziou o copo, dando sinais evidentes de que gostaria de tomar mais. Martin tornou a encher o copo. Enquanto bebiam, Martin ficou olhando para a rua. “Está esperando alguém?” perguntou o visitante.

“Ontem à noite”, respondeu Martin, “estava lendo que Cristo foi à casa de um fariseu que não o recebeu com as devidas homenagens. Suponhamos que uma coisa dessas acontecesse comigo? O que eu não faria para recebê-Lo! Então, enquanto dormia, ouvi alguém cochichando: ‘Olha para a rua amanhã, pois eu virei’.”

Quando Stepánich ouviu aquilo, as lágrimas começaram a escorrer por suas faces. “Obrigado, Martin Avdéich. Você me reconfortou, na alma e no corpo.”

Stepánich foi embora, e Martin sentou-se para costurar uma botina. Quando olhou pela janela, uma mulher de sapatos de camponesa passou e parou junto da parede. Martin viu que ela estava vestida com roupas pobres, e tinha um bebê no colo. De costas para o vento, ela procurava agasalhar o bebê junto do corpo, embora vestisse apenas roupas leves e surradas. Martin saiu e os convidou a entrar.

Ofereceu-lhe pão e sopa. “Vá, coma, minha cara, e aqueça-se bem”, disse ele.

Enquanto comia, a mulher lhe contou quem era. “Sou mulher de soldado. Mandaram meu marido para longe, há oito meses, e não tive mais notícias dele. Não consegui arranjar trabalho e fui obrigada a vender tudo o que possuía para comprar comida. Ontem empenhei o meu último xale.”

Martin foi buscar um casaco velho. “Tome”, disse ele. “Está surrado, mas serve para embrulhar o bebê.” A mulher pegou o casaco e rompeu em prantos. “O Senhor o abençoe.”

Martin sorriu e contou a ela sobre seu sonho e a visita prometida. “Quem sabe? Tudo é possível”, disse a mulher. Ela se levantou e embrulhou o casaco em volta de si e do bebê. “Tome isto”, disse Martin, dando-lhe dinheiro para tirar o xale do penhor. Depois a acompanhou até a porta.

Martin tornou a sentar-se para trabalhar. Cada vez que aparecia uma sombra na janela, ele olhava para cima, para ver quem estava passando. Depois de algum tempo, viu uma mulher vendendo maçãs numa cesta. Às costas, tinha um saco pesado, que ela queria mudar de posição. Quando ela pôs a cesta junto de um poste, um menino com um boné esfarrapado pegou uma maçã e tentou fugir, mas a mulher agarrou-o pelos cabelos. O garoto gritou, e a mulher ralhou com ele.

Martin correu para a rua. A mulher estava ameaçando levar o menino à polícia. “Deixe-o ir, vovó”, disse Martin. “Perdoe o menino, pelo amor de Cristo.” A velha largou o garoto. “Peça perdão à vovó”, sugeriu Martin ao menino.

O menino começou a chorar e a pedir perdão. Martin pegou uma maçã da cesta e a deu ao menino, dizendo: “Eu lhe pago, vovó.”

“Esse capeta devia levar uma surra”, resmungou a velha. “Ah, vovó”, disse Martin, “se ele devia ser surrado por roubar uma maçã, que é que nos deveria acontecer, pelos nossos pecados? Deus manda que perdoemos, do contrário não seremos perdoados. Devemos sobretudo perdoar a um menino irresponsável.”

“Isso é bem verdade”, concordou a velha, “mas é que eles estão ficando levados da breca.”

Quando ela ia levantar o saco para as costas, o garoto deu um salto à frente. “Deixe que eu carregue para a senhora, vovó. Vou na mesma direção.”

Ela pôs o saco nas costas do menino e eles foram andando juntos pela rua.

Martin voltou ao trabalho. Dali a pouco, já não conseguia ver e não podia passar a agulha pelos furos no couro; então juntou suas ferramentas, varreu o chão e colocou um lampião na mesa. Depois pegou a Bíblia da prateleira.

Pretendia abrir o livro num lugar que tinha marcado, mas ele se abriu em outra página. Então, ouvindo passos, ele olhou em volta. Uma voz sussurrou em seu ouvido: “Martin, você não me conhece?”

“Quem é?” murmurou Martin. “Sou eu”, disse a voz – e, de um canto escuro do quarto, apareceu Stepánich, que sorriu e, desaparecendo como uma nuvem, não mais foi visto.

“Sou eu”, tornou a dizer a voz – e apareceu a mulher com o bebê ao colo. Ela sorriu, o bebê riu-se, e eles também desapareceram.

“Sou eu”, disse a voz, ainda uma vez. A velha e o menino com maçã apareceram, sorriram e desapareceram.

A alma de Martin alegrou-se. Ele começou a ler o Evangelho, onde estava aberto. No alto da página, dizia:

Por que tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era hóspede, e me recolhestes. (Mateus, 25:35.)

No fim da página, ele leu:

Quantas vezes vós fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim é que o fizestes. (Mateus 25:40.)

E Martin compreendeu que o Salvador na verdade tinha ido a ele naquele dia, e ele o recebera bem.


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