sexta-feira, 11 de abril de 2014

Astúcia de velho negro



Negro Velho é águia como ele só. Estava a roda em animada palestra na porta da botica do major Modesto, em Itapema, quando chegou Negro Velho de chapéu na mão e foi logo perguntando:
 Suncês num são capais di mi dizê quem é que é o home de mais de bem daqui da cidade?
 É o padre João, o vigário. Um homem muito sério.
 Num vê qui eu tô cum quinhento mil réis aqui n’algibeira. Eu vou viajar, são capais di robá  eu... ladrão  tá  cheio  aí.  Intão  vô  dá  os  quinhento mil réis pro padre guardá pra mim.
Logo na esquina estava formado outro grupo a conversar. O Negro Velho fez a mesma pergunta e obteve a mesma resposta.
 Vó de viagê, e agora eu vô pedi pra seu vigário guardá a nota de quinhento. Uma nota nova… que tá estralando no dobrar.
Repetiu a cena em diversos pontos da cidade. E desapareceu.
Daí um mês, surgiu na casa do vigário.
 Sô vigário, eu vim buscá os quinhento mil réis que dei pra vassuncê guardá pra mim.
 Que quinhentos mil réis, homem?  Você está maluco?  Eu nunca te vi mais gordo, seu…
 Ah, seu padre! Num faça isso cum Nego Véio. Cidade inteira sabe que eu dei quinhento mil réis pra vassuncê  guardá  pra  mim. Testemunha tá cheio. Tá bulindo de testemunha aí que sabe.
  Puxa daqui, seu velhaco! Seu tratante!
Negro Velho saiu. Justou o rábula e acionou o vigário.
Na primeira audiência, compareceram as partes e as testemunhas. Perguntou o juiz:
 Senhor vigário, este homem alega que lhe deu quinhentos mil réis para guardar. É falso?
 Num é mentira não, sô dotô. Era uma nova, cum aqueles oião grande, grande!
Um fazendeiro, amigo do vigário, a fim de poupar-lhe incômodos, interveio, dirigindo-se ao preto:
 Onde é que você está com a cabeça, homem?  Você não deu os quinhentos mil réis pro padre guardar. Você deu os quinhentos mil réis foi pra eu guardar.
 Não sinhô!  Esses foi outros  quinhento  mil  réis.  Depois num vá querê negá também, uai!

§ § § § §

Numa Escola sertaneja


Entrei na sala de aulas da escola sertaneja. Os alunos, barrigudinhos, de pernas finas como sabiás, de cabelos compridos como beiradas de rancho de sapé, levantaram-se e ficaram firmes como estátuas. Mandei-os que se sentassem, e a professora fez uma demonstração de aula, dizendo  que    apenas  três  meses organizara a sua classe.
– Formação de frases!  Seu Joãozinho, organize uma frase terminando com a palavra rico.
– A professora é rico!
 Ora, o senhor está me envergonhando. Lá o senhor, seu Salatiel.
– O boticário é rico.
– Muito bem! Agora outra frase terminando em cera.

Toda a classe pôs-se a pensar, até que um ruivinho, dos olhos azuis, deu sinal de que sabia.
– Diga o senhor, seu Joanim. Uma frase terminando em cera.
Buona cera.
Rimo-nos, e a professora continuou:

  Seu Chiquinho, quantos sentidos nós temos?
 Cinco sentidos.
– Seu Rafael, para que serve a boca?
  A boca? Pra gostá.
– Seu Maneco, para que serve o nariz?
 O nariz? Pra cheirá.
– Seu Julinho, para que servem os olhos?
 Os óio pra oiá.
– Seu Mingote,  um sentido que temos bem pronunciado nas palmas das mãos? Para que serve?
 Pra aparpá.
 Agora o senhor, seu Salvador, para que é que serve a orelha?
 A oreia? A oreia… pra ponhá toco de cigarro.
– É  como  o  senhor  vê.  A  classe  está nesse atraso, mas daqui a um ano será outra,  pois  as
crianças  brasileiras  são inteligentíssimas.  O senhor está estranhando este monte de livros em cima da mesa? Vou mostrar-lhe a utilidade que têm.
Encurvou a palma da mão esquerda, e começou:
 Meninos, um grão de milho e mais um grão de milho, quantos são?
 Dois!
 Muito bem! Dois grãos de milho, mais um?
  Três!
 Perfeitamente! Agora três grãos de milho e mais dois?
 Sete!
   Não!  Pensem bem.  Tenho fechado  na  palma  da  mão três grãos de milho e mais dois. Quantos são?
 Um punhadinho.
– Como  o  senhor  vê,  isto  até  me  faz rir sozinha algumas vezes. Vai o senhor ouvir o mais  atrasadinho  da  classe.  Seu Salvador, quem de cinco tira três, quanto é que fica?
 Oito!
 Não é aumentar, menino!  É diminuir!  Tirar.  Preste bem  atenção. Quem de cinco dedos tira três dedos tira três dedos, o que é que fica?
 Fica aleijado!


(Transcritos do cd Som da Terra; Cornélio Pires. 
Warner Music Brasil, 99)






Cornélio Pires – 1884 - 1958


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