sexta-feira, 4 de abril de 2014

Bochincho*




A um bochincho − certa feita,
fui chegando − de curioso,
que o vício − é que nem sarnoso,
nunca para − nem se ajeita.
Baile de gente direita
Eu vi, de pronto, que não era,
na noite de primavera
gaguejava a voz dum tango
e eu sou louco por fandango
que nem pinto por quirera!

Atei meu baio − longito,
num ramo de guamirim,
desde guri fui assim,
não brinco nem facilito.
Em bruxas não acredito
“pero −- que las hay, las hay”,
Eu sou da costa do Uruguai,
meu velho pago querido
e por andar desprevenido
há tanto guri sem pai.

No rancho de santa-fé,
de pau-a-pique barreado,
num trancão de convidado
Eu me entreverei no banzé.
Chinaredo à bola-pé,
no ambiente fumacento,
um candeeiro, bem no centro,
num lusco-fusco de aurora,
pra quem chegava de fora
pouco enxergava ali dentro!

Dei de mão numa tiangaça
que me cruzou no costado
e já saí entreverado
entre a poeira e a fumaça,
oigalê china lindaça!
morena de toda a crina,
dessas da venta brasina,
com cheiro de lechiguana
que quando ergue uma pestana
até a noite se ilumina.
Misto de diaba e de santa,
com ares de quem é dona
e um gosto de temporona
que traz água na garganta.
Eu me grudei na percanta
o mesmo que um carrapato
e o gaiteiro era um mulato
que até dormindo tocava
e a gaita choramingava
como namoro de gato!

A gaita velha gemia,
às vezes quase parava,
de repente se acordava
e num vanerão se perdia,
e eu - contra a pele macia
daquele corpo moreno,
sentia o mundo pequeno,
bombeando cheio de enlevo
dois olhos − flores de trevo
com respingos de sereno!

Mas o que é bom se termina
− cumpriu-se o velho ditado,
eu que dançava embalado,
nos braços doces da china
escutei − de relancina,
uma espécie de relincho,
era o dono do bochincho,
meio oitavado num canto,
que me olhava − com espanto,
mais sério do que um capincho!

E foi ele que se veio,
pois era dele a pinguancha,
bufando e abrindo cancha
como dono de rodeio.
Quis me partir pelo meio
num talonaço de adaga
que − se me pega − me estraga,
chegou levantar um cisco,
mas não é à toa − chomisco!
que sou de São Luís Gonzaga!
Meio na volta do braço
consegui tirar o talho
mas quase que me atrapalho
porque havia pouco espaço,
mas senti o calor do aço
e o calor do aço arde,
me levantei − sem alarde,
por causa do desaforo
e soltei meu marca touro
num medonho buenas-tarde!

Eu tenho visto coisa feia,
tenho visto judiaria,
mas ainda hoje me arrepia
lembrar aquela peleia,
talvez quem ouça − não creia,
mas vi brotar no pescoço
como uma cinta vermelha
e desde o beiço até a orelha
ficou relampiando o osso!

O índio era um índio touro,
mas até touro se ajoelha,
cortado do beiço a orelha
amontoou-se como um couro
e, amigos, aquilo foi um estouro,
daqueles que dava medo,
espantou-se o chinaredo
e, amigos − foi uma zoada,
parecia até uma eguada
disparando num varzedo!

Não há quem pinte o retrato
dum bochincho − quando estoura,
tinidos de adaga − espora
e gritos de desacato.
Berros de quarenta e quatro
de cada canto da sala
e a velha gaita baguala
num vanerão pacholento,
fazendo acompanhamento
do turumbamba de bala!

É china que se descabela,
redemoinhando na porta
e chiru da guampa torta
que vem direto à janela,
gritando − de toda a guela,
num berreiro alucinante,
índio que não se garante,
vendo sangue − se apavora
e se manda − campo a fora,
levando tudo por diante!

Sou crente na divindade,
morro quando Deus quiser,
mas, amigos, seu eu disser,
até periga a verdade,
naquela barbaridade,
de chinaredo fugindo,
de gritos e bala zunindo,
o gaiteiro − alheio a tudo,
tocava um xote clinudo,
já quase meio dormindo!

E a coisa ia indo assim,
balanceei a situação,
− já quase sem munição,
todos atirando em mim.
Qual ia ser o meu fim?
Me dei conta - de repente,
não vou ficar pra semente,
mas gosto de andar no mundo,
me esperavam na do fundo,
saí na porta da frente...

E dali ganhei o mato,
abaixo de tiroteio
e ainda escutava o floreio
da cordeona do mulato
e, pra encurtar o relato,
me bandeei pra o outro lado,
cruzei o Uruguai, a nado,
que o meu zaino era um capincho
e a história desse bochincho
faz parte do meu passado!

E a china?

E a china? − eu nunca mais a vi
no meu gauderiar andejo,
somente em sonhos a vejo
em bárbaro frenesi.
Talvez ande − por aí,
no rodeio das alçadas,
ou − talvez − nas madrugadas,
seja uma estrela chirua
dessas − que se banha nua,
no espelho das aguadas!

(Do livro “Bota de Garrão”, de Jayme Caetano Braun - Editora Sulina)

Bochincho – baile de campanha, da plebe, arrasta-pé, divertimento chinfrim próprio de gentalha.

Clique no botão abaixo, e escute a declamação do poema pelo próprio autor: Jayme Caetano Braun








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