quarta-feira, 23 de abril de 2014

Continho de terror


             
O homem com orelhas de abano se aproximou do menino que voltava do colégio trazendo pela mão um macaquinho vestido de marinheiro:

- Você não devia sair de casa com esse macaquinho. Está fazendo muito frio e é um bichinho muito frágil.

- Todo dia eu levo ele pro colégio e nunca aconteceu nada – disse o menino.

Meia hora depois que o menino chegou no seu apartamento e o macaquinho começou a dar mostras de tristeza. Não quis comer. Uma semana depois lá se foi o macaquinho.

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A senhora gorda correu para atravessar a rua sem olhar para o lado da contramão. Deu um esbarrão num homem parado na esquina, derrubando o embrulho de compras que acabara de fazer.

- Desculpe... – disse ela notando que o homem tinha umas orelhas de abano engraçadíssimas.

- De nada. A senhora não deve atravessar sem olhar nas duas direções. É perigoso.

- Mas essa rua é de mão única. Eu olhei na direção dos carros – explicou a gorda senhora enquanto o homem de orelhas de abano lhe ajudava a apanhar os embrulhos. – Depois, há quinze anos que eu atravesso aqui e nunca aconteceu nada.

- Eu sei, mas pode vir um louco na contramão – respondeu enquanto se afastava, suas orelhas balançando ao vento da tarde.

A senhora gorda foi atropelada na próxima esquina. Por um carro que vinha justamente na contramão.

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Os dois caixeiros-viajantes avançaram um pouco mais na fila de embarque, protegendo-se da chuva.

- Eu pensei que você não tinha conseguido lugar – falou o primeiro.

- E não tinha mesmo. Cheguei em cima da hora e já estava tudo lotado.

- Então como é que você está embarcando?

− Por acaso. Tem um cara, um desses apavorados, que resolveu desistir da viagem e me vendeu a passagem dele. Disse que com o temporal, um ônibus velho como esse podia despencar numa curva – contou o segundo, rindo do absurdo.

- Puxa, que sorte! Quem foi o sujeito? – perguntou o amigo.

- Aquele ali que está indo embora. Aquele de orelhas de abano.

(Do livro “O astronauta sem regime”, de Jô Soares)


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