* (Excerto)
Gravura de Berega
O Jango
Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada véspera do casamento
o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento,
até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada;
da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três
dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas
na ramada, uma caixa de música na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava
posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada
nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos ver se
o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de
arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo no
trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não
podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do
seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda
não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas
cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava
chorando: fizemos uma algazarra e ela - tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num
vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que
estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também
a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber por
quê... sem saber por quê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
- Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi
um vozerio geral; a moça, porém, ficou, como estava, no quadro da porta, rindo
e chorando, cada vez menos sem saber por quê... pois o pai estava chegando e o
seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...
Era já fusco-fusco. Pegaram a
acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no
terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as
bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem
de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém
informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a
tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa,
para o sofá enjeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados
disse:
- A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros...
E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu
um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o
crivaram de bala.... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar
o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o
balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os
sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo
manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de
colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de
cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...
Então rompeu o choro na casa toda.
(Do livro “Contos Gauchescos”, de
J. Simões Lopes Neto)
* Excerto = parte do texto.
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