Glaucus Saraiva
Carreteiros foto de
Lunara
Feijão
“Negro, gringo e judeu macho...
nem criado guaxo!” “Negro com posição, encrenca no galpão!” Estes e muitos
outros ditados gauchescos, são vestígios do preconceito racial que existia,
antigamente no Rio Grande do Sul.
Agora vamos lidar com o feijão
principalmente o preto, para o qual o gaúcho nunca teve preconceito; muito ao
contrário; diariamente se empanturra dele, isto é, se empanturrava, porque este
crioulo anda arisco como sorro de mato; vez que outra dá uma atropelada a campo
afora e mal se bota os olhos em cima dele, o infeliz já se esconde de novo. O
negócio é ficar mascando o freio, espumando na barbela e esperar de panela em
riste, que o moreno caia em algum mundéu. Mas, antes, vamos contar alguns
segredos sobre “temperaturas e medidas”, pois não enfrentando bem estas,
qualquer receita destrilha.
Temperaturas:
Temos o fogo leve (brando), o
fogo esperto e o fogo forte, que manobraremos conforme as receitas. No fogão é
fácil de controlar a quentura, botando maior ou menor quantidade de lenha. No forno,
entretanto, o andar é outro: Referimo-nos forma de abóbada, para fazer pão e
assados ao forno de campanha. Depois tirar as brasas - estado que alguns chamam
de “forno morto” –coloca-se dentro um pedaço de papel de venda, desses de
embrulho. Espera-se um pouquinho, coisa de dois minutos, um minuto e pouco. Se
o papel conservar a cor natural, estamos com fogo leve; se amarelecer, é fogo
esperto; se escurecer de vez é fogo forte. Se alguém duvidar desta última, que
enfie a cabeça dentro do forno para sentir o coice do bafo, mas não esqueça,
antes, de botar pelo menos um salzinho na pipolheira; pode ser que apareça
algum aficionado de cabeça humana, já que a de porco e ovelha são tão
disputadas.
Medidas:
Os utensílios aqui citados é que
servem para determinar quantidades, são os de tamanho normal, comum.
Xícara: A de café ou de chá. Não
confundir com as enormes xícaras que mais parecem urinóis usados por aqueles
que “têm o olho maior do que a barriga”.
Xícara cheia: É a xícara transbordando.
Xícara rasa: É a xícara que, depois cheia, passa-se uma faca
pelas bordas para emparelhar.
Copo: O de água. Nada daqueles
verdadeiros baldes com que os “mamáua” se encharcam de cerveja ou chope.
Cálice: O de licor, delicadinho.
Colher de sopa rasa ou cheia: Da mesma maneira que a xícara.
Colherinha: De chá ou café.
Punhado: A quantidade retida na mão fechada.
Pifado: Meia colherinha, ou a quantidade retida na ponta de
uma faca de mesa ou no bico de uma colher de sopa.
Feijão simples:
Quando comprado, se conhece o
feijão novo pela sujeira. O feijão velho, geralmente, é bem mais limpo e
lustroso. Quanto à receita, escolha-o bem, ciscando como galinha pra pinto e
expurgando as forças ocultas, como pedras, feijões de outras raças, gorgulhos
subversivos etc, etc. Deixe de molho durante a noite. Ele não sabe nadar e
afunda. Por isso, no outro dia estará inchado e macio. Alguns escorrem a água,
desprezando-a; outros o cozinham nesta mesma água. No primeiro caso, o feijão
cozido ficará com uma coloração marrom; no segundo, ficará bem preto. Dizem
alguns autrófogos que a última maneira é a mais acertada, pois a água em que
faleceu conserva boa parte do teor nutritivo do feijão. Escolha o modo que lhe
agradar. Ponha a panela no fogo com feijão e água a uns três dedos acima.
Quando estiver fervendo, corcoveando mesmo, toque-lhe uma pitada de açúcar para
quebrar o amargor. Agora descasque e pique miudinho, cebola na quantidade
proporcional ao volume do feijão e ao gosto do cozinheiro. Se começar a arder-lhe
os olhos, atire o corpo pra trás, entonado como pica-pau em mourão e espiche os
braços, ficando bem longe da bandida; do contrário, as lágrimas confundirão a
arte culinária com velório de campanha. E vingue-se da maldita causadora do seu
pranto, atirando-a em pedacinhos na panela do feijão. Amasse uns dentes de alho
para o mesmo destino da ingrata. Coloque também, a gordura (banha de porco,
óleo vegetal ou graxa bovina, mesmo) com alguma generosidade; feijão gordo é
que é o bom. Depois de ferver um pouco bastante lhe ponha o sal; não muito.
Mexa-o e prove. Se estiver no ponto, muito bem; se não, ponha-lhe mais até
chegar lá. Observação: não se coloca o sal no princípio porque ressabeia. E
deixe ferver no mais, cuidando sempre, para que não seque a água. É hora de
botar um galhinho de manjerona, ou uma folha de louro ou os dois, se gostar.
Tire uns grãozinhos e toque-lhe os dentes com vontade de cachorro magora. Se já
estão chegando a ponto do cozimento e para engrossar o caldo, empunhe uma
escumadeira com ganas de peleador e esmague parte dos grãos contra o fundo da
panela. Não demora muito e estará olfateando um feijãozinho simples, mas
cheiroso e gostoso de arreganhar as ventas e tremer os beiços. Coma-o
espalhando uma farinha de mandioca por cima.
Ingredientes para o feijão:
Relacionaremos os mais comuns.
Mas não se emocione pensando que se bota tudo ao mesmo tempo, enquadrilhado.
Não senhor. Põe-se um ou outro; no máximo dois ou três mancomunados. Do
contrário vira feijoada, cuja receita daremos adiante. Mas vamos aos parceiros
que podem se acolherar ao feijão. Primeiro um osso com carne verde - quando
se carneia, ou algum vizinho o faz para vender a carne, o que é comum na
campanha, ou, ainda, se existe por perto algum lugarejo com açougue. Uns pedaços
de couve. Pêssego natural, inchado, porque o maduro desmancha logo. Salgados:
estes, como o feijão, ficam de molho na véspera, em vasilha à parte. Conforme o
ponto do sal, muda-se a água, quantas vezes forem necessárias, para retirar o
excesso. São eles: Charque de ovelha ou bovino, de preferência gordo; linguiça.
Do porco, o toucinho, a costeleta, a pata, a orelha, a pele (couro) e o
torresmo. Da vaca, o úbere.
Feijão mexido
Faz-se o feijão simples,
deixando-o um pouquinho mais caldeado e carregando-se no tempero. Neste caso, a
pimenta verde é indispensável. Caso o pessoal não goste muito desta menina,
assanhe-a só um pouquinho na panela, mas na hora da mesa, num pires ou qualquer
vasilha, deixe um bando delas nadando em vinagre ou azeite, sem maiôs ou
biquínis, completamente nuas, ardentes, para regalo dos olhos e paladar dos
apreciadores. Mas quanto ao feijão, deve estar picadinho no sal, porque a
farinha de mandioca vai arrefecê-lo. Atice o fogo e conserve a fervura. Com a
canhota, manoteie um punhado de farinha; com a direita empunhe uma colher de
pau ‒ na falta desta, outra qualquer de tamanho grande. Vá deixando cair a
farinha aos pouquinhos, como se fosse um chuveiro ralo, e, com a colher,
mexendo sempre, sem parar, mesmo quando for agarrar outro punhado de farinha. O
caldo vai engrossando, engrossando, até ficar pastoso. Está no ponto. Se quiser
enfeitar a jogada quando servir os pratos, espalhe salsa bem picadinha por
cima. Alguns preferem o mexido mais empaçocado. É só hora do chuveiro. Feijão
mexido mais freqüente é aquele que se faz das sobras do feijão anterior. Neste
caso é só colocar gordura na panela, refogar com cebola picada, botar o feijão,
retemperar e proceder como acabamos de registrar.
Preto e branco:
É o “feijão com arroz” feito da
maneira mais singela e prática. Faça um feijão simples, picadinho no sal e bem
caldeado. Quando estiver querendão de ficar no ponto, ponha na mesma panela e
misture uma quantidade proporcional de arroz anteriormente escolhido e lavado.
Deixe-os cozinhar juntos num amplexo culinário. Vá provando de vez em quando,
para não passar do ponto. Ai está o “preto e branco”, fervendo na mesma panela,
democrático livre de preconceitos, tão gostosos que deixará arrependido e
recalcado qualquer racista que não o tenha provado antes.
Feijão miúdo:
Este é um prato especialíssimo.
Duvido que na tribo dos feijões exista outro mais saboroso. O feijão miúdo
apresenta dois estados: quando é plantado em casa, colhido e descascado da
vagem, tenrinho macio; quando se deixa os grãos secar, guardando-os na dispensa
para aproveitamento posterior e, ao passar de tempo, vão enrijecendo. Nas
cidades pode-se comprá-lo de uma ou outra maneira, conforme a época. Vamos à
receita. No primeiro caso não é necessário deixá-lo de molho na véspera; no
segundo, este processo é indispensável. Sempre bem escolhido, porque, a limpeza
é apanágio de todo bom cozinheiro. Agora, os ingredientes em quantidades
proporcionais à panelada, e o entrevero propriamente dito. Na véspera, quando a
boca da noite cantar pela voz dos grilos e sapos, serenateando as estrelas, e a
lua vier bisbilhotar pelas frestas dos ranchos, faça um contracanto de faca
carneadeira assobiando no brincar com a chaira. No altar da mesa limpa, os
salgados esperam a imolação. Dose bem as quantidades, porque, aqui, quase todos
se entropilham. Um pouco de cada um; do contrário não há panela que agüente.
Com água, uma vasilha grandota. Comece o sagrado ritual, cortando as vítimas e
jogando-as na água. Toucinho: corte em pedaços pequenos, no máximo uma
polegada. Costeletas: separe-as uma por uma (dele lá, o chancho). Orelhas (as
do porco, não as suas): Divida-as em três ou quatro partes. Pele: em tira, com
uma polegada de largura, por um dedo de comprimento (cuidado com a sal, se
não é firme na faca, pois pode ir com dedo e tudo). Patas (as do cevado, não a
esposa do pato): divida-as em duas, ao correr do garrão. Charque (de ovelha ou
de boi): em pedaço maiores; duas polegadas e meia, mais ou menos. Lingüiça: da
mesma maneira que o charque. Agora lave bem e deixe de molho; se necessário,
durante a noite, mude a água uma ou várias vezes para que as carnes não sequem
o feijão. Golpeie uns tragos de canha, enrole um cigarrão de palha inteira e
fumo bueno. Espiche o lombo na cama e, tragando de todo bofe, aguarde a
dormideira com sonhos de pança cheia. No outro dia, cedito, panela e feijão no
fogo com bastante água. Não esqueça a pitada de açúcar para quebrar amargores.
Ponha junto o que é mais demorado de cozinhar: toucinho, charque, patas,
orelhas e peles. Sapeque cebola bem picadinha e alho esmagado. Enquanto ferve,
descasque umas batatas inglesas e corte-as em quadrados pequenos. Idem com
uma abobrinha verde (ou mais de uma, se a panela é grande), mas em pedaços maiores,
porque é muito tenra e se desmancha fácil. Deixe os pedaços mergulhados na água
para não escurecerem. Agora, ponha a gordura na quantidade adequada, levando em
conta o graxedo que já foi com o toucinho e os outros salgados. Dê uma dentada
nas carnes da panela. Se já estiverem se entregando, coloque as costeletas, a
lingüiça e a batata inglesa, ao mesmo tempo em que uns galhinhos de manjerona e
folhas de louro. E deixe ferver, ficando de orelha em pé e olfato em riste. De vez em
que dê uma bombeada para controlar a água e provar o sal. Quando estiver quase
pronto, deite a abobrinha verde e não se descuide. Quando esta estiver cozida,
pode prender o grito para os convidados e servir. Vai ser um Deus nos acuda! Se
sobrar alguma coisa é porque alguns estão mal de bucho. Caso contrário,
abandone a arte culinária, porque o feijão miúdo, feito na lei, é tão gostoso
que não sobra nunca. Cumpre esclarecer que este é um prato especial e não muito
freqüente na mesa de campanha.
Feijoada:
Outro prato incomum na campanha.
A receita é a mesma do feijão miúdo, excluindo-se, entretanto, a abobrinha
verde e a batata inglesa. Ao contrário das feijoadas da cidade, servidas até
com laranja e outros mistérios, a do gaúcho é acompanhada de arroz comum e
farinha de mandioca em separado.
Sopa de feijão:
Geralmente é feita com a sobra do
feijão simples. Coloca-se este na panela e retempera-se, principalmente com
cebola picada e tempero verde, atiçando o fogo. Quando levantar a fervura,
adiciona-se massa (talharim ou espaguete) com pedaços de batata inglesa.
Ferve-se mais um pouco e prova-se o sal, dando-lhe o ponto exato. Estando
cozidas massas e batata, pode servir que está pronta. Esta sopa pode, também,
ser feita de primeira mão, sem esperar as sobras. Neste caso é cumprir a
receita do feijão simples, aumentando-se, porém, o volume d'água para receber,
quando o prato estiver quase pronto, a massa, a batata e o tempero verde.
Outros feijões:
Como já dissemos, o feijão
preferido do gaúcho é o preto. Eventualmente, entretanto, pode aparecer na mesa
campeira outros, como o branco, mais usado para o mocotó; o mulatinho, o
cavalo, o fradinho, o carioca, o mourinho etc., etc. Mas, com licença. O sol
está alto. Ouço o badalar de um sino. Isto me lembra que já é: Meio-dia.
Panela no fogo,
Barriga vazia
Macaco torrado
que vem da Bahia...
Barriga vazia
Macaco torrado
que vem da Bahia...
(Saraiva, Glaucus. “Culinária
gauchesca: feijão”.
Correio do Povo.
Porto Alegre, 14 de dezembro de 1976)
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