segunda-feira, 7 de abril de 2014

Deve um queijo!…

        

João Simões Lopes Neto

O velho Lessa era um homem assinzinho... nanico, retaco, ruivote, corado, e tinha os olhos vivos como azougue... Mas quanto tinha pequeno o corpo, tinha grande o coração.
E sisudo; não era homem de roer corda, nem de palavra esticante, como couro de cachorro. Falava pouco, mas quando dizia, estava dito; pra ele, trato de boca valia tanto - e até mais - que papel de tabelião. E no mais, era  pão, pão; queijo, queijo! -
E, por falar nisto:
Duma feita no Passo do Centurião, numa venda grande que ali havia, estava uma ponta de andantes, tropeiros, gauchada teatina, peonada, e tal, quando descia um cerro alto e depois entrava na estrada, ladeada de butiazeiros, que se estendem para os dois lados, sombreando o verde macio dos pastos, quando troteava de escoteiro, o velho Lessa.
De ainda longe já um dos sujeitos o havia conhecido e dito quem era e donde; e logo outro  passou voz que aí no mais todos iriam comer um queijo sem nada pagar...
Este fulano era um castelhano alto, gadelhudo, com uma pera enorme, que ele às vezes, por graça ou tenção reservada, costumava trançar, como para dar mote a algum dito, e ele retrucar, e, daí, nascer uma cruzada de facões, para divertir, ao primeiro coloreado…
Sossegado da sua vida o velho Lessa aproximou-se, parou o cavalo e mui delicadamente tocou na aba do sombreiro:
 Boa-tarde, a todos!
E apeou-se.
Maneou o mancarrão, atou-lhe as rédeas ao pescoço e dobrou os pelegos, por causa da quentura do sol.
Quando ia a entrar na venda, saiu-lhe o castelhano, pelo lado de laçar... A este tempo o negociante saudava o velho, dizendo:
 Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então, vem de Canguçu, ou vai?...
Antes que o cumprimentado falasse, o castelhano intrometeu-se:
 Ah! es usted de Canguçu?... Entonces... debe un queso!...
O paisano abriu um ligeiro claro de riso e com toda a pachorra ainda respondeu:
 Ora, amigo... os queijos andam vasqueiros...
 Si, pa nosotros... pero Canguçu pagará queso, hoy!...
O vendeiro farejou catinga agourenta, no ar, e quis ladear o importuno; o velho Lessa coçou a barbinha do queixo, coçou o cocuruto, relanceou os olhinhos pelos assistentes, e mui de manso pediu ao empregado do balcão:
 ‘Stá bem!... Chê! dê-me aquele queijo!...
E apontou para um rodado dum palmo e meio de corda, que estava na prateleira, ali à mão.
O gadelhudo refastelou-se sobre um surrão de erva, chupou os dentes e ainda enticou:
 Oigalê!... bailemos, que queso hay!...
Com a mesma santa paciência o velho encomendou então o seu almoço  ovos, um pedaço de linguiça, café  e depois pegou a partir o queijo, primeiro ao meio, em duas metades e depois uma destas em fatias, como umas oito ou dez; acabando, ofereceu a todos:
 São servidos?
Ninguém topou: agradeceram; então disse ele ao cobrador:
 Chê!... pronto! Sirva-se!...
O castelhano levantou-se, endireitou as armas e chegando-se para o prato repetiu o invite:
 Entonces?... está pago, paisanos!...
E às talhaditas começou a comer.
O velho Lessa  ele tinha pinta de tambeiro, mas era touro cupinudo... pegou a picar um naco; sovou uma palha; enrolou o baio; bateu os avios, acendeu e começou a pitar, sempre calado, e moneando, gastando um tempão...
Lá na outra ponta do balcão um freguês estava reclamando sobre uma panela reiuna, que lhe haviam vendido com o beiço quebrado...
Aí pelas seis talhadas o clinudo parou de mastigar.
 Bueno. . buenazo!... pero no puedo más!...
Mas o velho, com o facão espetou uma fatia e ofereceu-lhe:
 Esta, por mim!
 Si, justo: por usted, vaya!…
E às cansadas remoeu o pedaço.
E mal que engoliu o último bocado, já o velho apresentava-lhe outra fatia, na ponta do ferro:
 Outra, a saúde de Canguçu!...
 Pero...
 Não tem pero nem pera... Come...
 Pe…
 Come, clinudo!...
E, no mesmo soflagrante, de plancha, duro e chato, o velho Lessa derrubou-lhe o facão entre as orelhas, pelas costelas, pelas paletas, pela barriga, pelas ventas… seguido, e miúdo, como quem empapa d’água um couro lanudo. E com esta sumanta levou-o sobre o mesmo surrão de erva, pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do queijo e gritou-lhe nos ouvidos:
 Come!...
E o roncador comeu... comeu até os farelos...; mas, de repente, empanzinado, de boca aberta, olhos arregalados, meio sufocado, todo se vomitando, pulou porta fora, se foi a um matungo e disparou para a barranca do passo… e foi-se, a la cria!...
O reclamador da panela desbeiçada deu uma risada e chacoteou, pra o rastro:
 ‘Orre, maula!... quebraram-te o corincho!...
E o velhito, com toda a sua pachorra indagou pelo almoço, se já estava pronto?...
 Os ovos..., a linguiça..., o café?…

(Do livro "Contos Gauchescos", De J. Simões Lopes Neto)


João Simões Lopes Neto foi, segundo estudiosos e críticos de literatura, o maior escritor regionalista do Rio Grande do Sul. Nasceu em Pelotas, em 9 de março de 1865, filho de família abastada da região.

Com treze anos de idade, foi para o Rio de Janeiro, estudar no famoso colégio Abílio. Retornando ao Sul, fixa-se em sua terra natal, Pelotas, então rica e próspera pelas mais de cinqüenta charqueadas que lhe davam a base econômica.

Envolveu-se em uma série de iniciativas de negócios que incluíram uma fábrica de vidros e uma destilaria. Os negócios fracassaram, pois a época foi marcada pela devastadora guerra civil no Rio Grande do Sul e a economia local fora duramente abalada. Depois disso, construiu uma fábrica de cigarros. Os produtos, fumos e cigarros, receberam o nome de "Diabo", "Marca Diabo", o que gerou protestos religiosos. Sua audácia empresarial o levou ainda a montar uma firma para torrar e moer café, e desenvolveu uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou ainda uma mineradora, para explorar prata em Santa Catarina.

Casou-se aos 27 anos com Francisca de Paula Meireles Leite, de 19 anos, no dia 5 de maio de 1892.

Como escritor, Simões Lopes Neto procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições.

Entre 15 de outubro e 14 de dezembro de 1893, J. Simões Lopes Neto, sob o pseudônimo de "Serafim Bemol", e em parceria com Sátiro Clemente e D. Salustiano, escreveram, em forma de folhetim, "A Mandinga", poema em prosa. Mas a própria existência de seus co-autores é questionada. Provavelmente foi mais uma brincadeira de Simões Lopes Neto.

Em certa fase da vida, empobrecido, sobreviveu como jornalista em Pelotas.

Publicou apenas três livros em sua vida: Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), e Lendas do Sul (1913).

Morreu em 14 de junho de 1916, em Pelotas, aos cinquenta e um anos, de uma úlcera perfurada.

Sua literatura ultrapassou fronteiras e hoje pertence à literatura universal, tendo sido traduzido para diversas línguas. 


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