João Simões Lopes Neto
O velho Lessa era um homem assinzinho... nanico, retaco, ruivote, corado, e tinha os olhos vivos como azougue... Mas quanto tinha pequeno o corpo, tinha grande o coração.
E sisudo; não era homem de roer
corda, nem de palavra esticante, como couro de cachorro. Falava pouco, mas
quando dizia, estava dito; pra ele, trato de boca valia tanto - e até mais - que papel de tabelião. E no
mais, era ‒ pão, pão; queijo, queijo! -
E, por falar nisto:
Duma feita no Passo do Centurião,
numa venda grande que ali havia, estava uma ponta de andantes, tropeiros,
gauchada teatina, peonada, e tal, quando descia um cerro alto e depois entrava
na estrada, ladeada de butiazeiros, que se estendem para os dois lados, sombreando
o verde macio dos pastos, quando troteava de escoteiro, o velho Lessa.
De ainda longe já um dos sujeitos o
havia conhecido e dito quem era e donde; e logo outro ‒ passou voz que aí no mais todos
iriam comer um queijo sem nada pagar...
Este fulano era um castelhano alto,
gadelhudo, com uma pera enorme, que ele às vezes, por graça ou tenção
reservada, costumava trançar, como para dar mote a algum dito, e ele retrucar,
e, daí, nascer uma cruzada de facões, para divertir, ao primeiro coloreado…
Sossegado da sua vida o velho Lessa
aproximou-se, parou o cavalo e mui delicadamente tocou na aba do sombreiro:
‒ Boa-tarde, a todos!
E apeou-se.
Maneou o mancarrão, atou-lhe as
rédeas ao pescoço e dobrou os pelegos, por causa da quentura do sol.
Quando ia a entrar na venda, saiu-lhe
o castelhano, pelo lado de laçar... A este tempo o negociante saudava o velho,
dizendo:
‒ Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então, vem de
Canguçu, ou vai?...
Antes que o cumprimentado falasse, o
castelhano intrometeu-se:
‒ Ah! es
usted de Canguçu?... Entonces... debe un queso!...
O paisano abriu um ligeiro claro de
riso e com toda a pachorra ainda respondeu:
‒ Ora, amigo... os queijos andam vasqueiros...
‒ Si, pa
nosotros... pero Canguçu pagará queso, hoy!...
O
vendeiro farejou catinga agourenta, no ar, e quis ladear o importuno; o velho
Lessa coçou a barbinha do queixo, coçou o cocuruto, relanceou os olhinhos pelos
assistentes, e mui de manso pediu ao empregado do balcão:
‒ ‘Stá bem!... Chê! dê-me aquele queijo!...
E apontou para um rodado dum palmo e
meio de corda, que estava na prateleira, ali à mão.
O gadelhudo refastelou-se sobre um
surrão de erva, chupou os dentes e ainda enticou:
‒ Oigalê!... bailemos, que queso hay!...
‒ São servidos?
Ninguém topou: agradeceram; então
disse ele ao cobrador:
‒ Chê!... pronto! Sirva-se!...
O castelhano levantou-se, endireitou
as armas e chegando-se para o prato repetiu o invite:
‒ Entonces?... está pago, paisanos!...
E às talhaditas começou a comer.
O velho Lessa ‒ ele tinha pinta de tambeiro, mas
era touro cupinudo... pegou a picar um naco; sovou uma palha; enrolou o baio;
bateu os avios, acendeu e começou a pitar, sempre calado, e moneando, gastando
um tempão...
Lá na outra ponta do balcão um
freguês estava reclamando sobre uma panela reiuna, que lhe haviam vendido com o
beiço quebrado...
Aí pelas seis talhadas o clinudo
parou de mastigar.
‒ Bueno. . buenazo!... pero no puedo más!...
Mas o velho, com o facão espetou uma
fatia e ofereceu-lhe:
‒ Esta, por mim!
‒ Si,
justo: por usted, vaya!…
E às cansadas remoeu o pedaço.
E mal que engoliu o último bocado, já
o velho apresentava-lhe outra fatia, na ponta do ferro:
‒ Outra, a saúde de Canguçu!...
‒ Pero...
‒ Não tem pero nem pera... Come...
‒ Pe…
‒ Come,
clinudo!...
E, no mesmo soflagrante, de plancha,
duro e chato, o velho Lessa derrubou-lhe o facão entre as orelhas, pelas
costelas, pelas paletas, pela barriga, pelas ventas… seguido, e miúdo, como
quem empapa d’água um couro lanudo. E com esta sumanta levou-o sobre o mesmo
surrão de erva, pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do queijo e gritou-lhe
nos ouvidos:
‒ Come!...
E o roncador comeu... comeu até os
farelos...; mas, de repente, empanzinado, de boca aberta, olhos arregalados,
meio sufocado, todo se vomitando, pulou porta fora, se foi a um matungo e
disparou para a barranca do passo… e foi-se, a la cria!...
O reclamador da panela desbeiçada deu
uma risada e chacoteou, pra o rastro:
‒ ‘Orre, maula!... quebraram-te o corincho!...
E o velhito, com toda a sua pachorra
indagou pelo almoço, se já estava pronto?...
‒ Os ovos..., a linguiça..., o
café?…
(Do livro "Contos Gauchescos", De J. Simões Lopes Neto)
João Simões Lopes Neto foi, segundo estudiosos e críticos de literatura,
o maior escritor regionalista do Rio Grande do Sul. Nasceu em Pelotas, em 9 de
março de 1865, filho de família abastada da região.
Com treze anos de idade, foi para o
Rio de Janeiro, estudar no famoso colégio Abílio. Retornando ao Sul, fixa-se em
sua terra natal, Pelotas, então rica e próspera pelas mais de cinqüenta
charqueadas que lhe davam a base econômica.
Envolveu-se em uma série de
iniciativas de negócios que incluíram uma fábrica de vidros e uma destilaria.
Os negócios fracassaram, pois a época foi marcada pela devastadora guerra civil
no Rio Grande do Sul e a economia local fora duramente abalada. Depois disso,
construiu uma fábrica de cigarros. Os produtos, fumos e cigarros, receberam o
nome de "Diabo", "Marca Diabo", o que gerou protestos
religiosos. Sua audácia empresarial o levou ainda a montar uma firma para
torrar e moer café, e desenvolveu uma fórmula à base de tabaco para combater
sarna e carrapatos. Fundou ainda uma mineradora, para explorar prata em Santa Catarina.
Casou-se aos 27 anos com Francisca de
Paula Meireles Leite, de 19 anos, no dia 5 de maio de 1892.
Como escritor, Simões Lopes Neto
procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas
tradições.
Entre 15 de outubro e 14 de dezembro
de 1893, J. Simões Lopes Neto, sob o pseudônimo de "Serafim Bemol", e
em parceria com Sátiro Clemente e D. Salustiano, escreveram, em forma de
folhetim, "A Mandinga", poema em prosa. Mas a própria
existência de seus co-autores é questionada. Provavelmente foi mais uma
brincadeira de Simões Lopes Neto.
Em certa fase da vida, empobrecido,
sobreviveu como jornalista em Pelotas.
Publicou apenas três livros em sua
vida: Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), e Lendas do Sul
(1913).
Morreu em 14 de junho de 1916, em
Pelotas, aos cinquenta e um anos, de uma úlcera perfurada.
Sua literatura ultrapassou fronteiras
e hoje pertence à literatura universal, tendo sido traduzido para diversas
línguas.
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