sexta-feira, 11 de abril de 2014

O cavalo e o folclore





Na sua História literária do Rio Grande do Sul, o escritor João Pinto da Silva afirma que o gaúcho brasileiro é, sobretudo, um soldado. E, acrescenta: Foi, sem sombra de dúvida, a sua posição de fronteiriço que lhe desenvolveu soberanamente o instinto de luta, o ânimo belicoso. O meio físico agiu, apenas, no sentido de lhe determinar a forma específica do exercício da atividade guerreira, obrigando-o, diante das planícies vastas, a procurar a colaboração do cavalo para vencer, com rapidez, as distâncias, ao encontro ou em perseguição do inimigo.

Tenho em mãos o Cancioneiro guasca, de Simões Lopes Neto, e, lendo essa obra antológica, reconheço que assiste razão plena ao crítico sulista. Estas confirmativas quadras do folclore dos pampas gaúchos ilustrariam irrecusavelmente os conceitos de João Pinto da Silva:


Menina da saia branca,
Lencinho da mesma cor,
Quem não ama militar
Não sabe o que é ter amor.

Fui soldado, sentei praça
No Regimento do Amor.
Agora sou ordenança
De toda moça bonita-flor.

Sou soldado, sentei praça
No Regimento do Amor.
Como sentei por meu gosto,
Não posso ser desertor.

Tenho meu cavalo baio
Do andar de saracura,
Quando quero ver as moças
Meu cavalo me procura,

Toda moça que não ama
Um mocinho militar,
Pode viver na certeza
Que no céu não há de entrar.

Ouvi tropel de cavalo
Esporinhas a tinir:
Era meu amante firme
Que vinha se despedir.

O encarnado diz: - guerra
Eu não venho guerrear,
Venho só dizer adeus
E também vos visitar.

Quem foi que disse não sei,
Mas quem disse não mentiu.
As moças de São Gabriel
Farda nunca resistiu.

Ao botar o pé no estribo,
Meu cavalo estremeceu.
Adeus, morena que ficas
Quem se vai embora sou eu!

Tenho meu cavalo escuro
Com uma lista na barriga,
Se a morena quer garupa
Faça senha, mas não diga...

E não só na poesia popular do Rio Grande do Sul se espelha o amor dos gaúchos ao cavalo. São versos da mocidade fogosa de Múcio Teixeira:

Meu bravo ginete, upa!
Upa, meu bravo corcel!
Eu levo sobre a garupa
Minha estrela e meu laurel...

Esse caráter de soldado e cavaleiro, do nativo de nosso extremo estado meridional, é acusado, segundo Romanguera Correia, nos próprios termos gaúcho e guasca, que perderam a primitiva acepção pejorativa e definiam, respectivamente, uma casta de índios guerreiros dados à equitação e a indefectível tira de couro de que os rio-grandenses, em geral, se utilizavam para os misteres da vida campesina.

O Vocabulário gaúcho, de Roque Callage, é repleto de termos bizarros, incompreensíveis para os vaqueiros nortistas, os centauros celebrizados pelo grande Euclides. Bem diversa da dos nossos é a terminologia dos recados ou arreios gaúchos, com aquela complicação toda de buçal, buçalete, badana, maneia, coxinilho, tentos, pessuelos, guasquinhas, copas, coscos etc... Não possuímos as armas e utensílios do campeiro pampiano: o laço e as bolas, inadaptáveis às caatingas nordestinas; nem as peças da indumentária: o pala, o poncho e o bichará. Para os gaúchos o cavalo ruim é pilungo, matungo, bem como teatino é o de dono desconhecido, malacara é o que tem uma "estrela" na testa, pangaré é o "melado" claro (baio), sapiroca o de olhos brancos, urcaço o de tamanho avantajado, chimarrão ou bagual o "brabo", redomão o mal domado, pingo o bom e vistoso ou "famoso", flete ou fletaço o bom, bonito e sempre elegantemente arreado.

Tão ciosos são os gaúchos da sua fama de cavaleiros destros e exímios que a um indivíduo que monte mal chamam desprezivelmente baiano ou maturrango. Não esquecer que baiano é, em todo o sul, sinônimo de nortista...

Não nos servindo para correrias e escaramuças guerreiras, não estimamos, por estas bandas do norte, o árdego corcel marcial, sim o manso cavalo de sela, de bralha macia ou equipado faceiro. Mesmo os vaqueiros preferem o cavalo manso, embora resistente e veloz. É o que lhes convém às atitudes de desleixo e aparente cansaço, quando deixam cair o corpo para um lado da sela, apoiando-se num só estribo. Mas, ainda assim, tem o cavalo presepeiro os seus incensadores entre os violeiros do nordeste. É conhecida a quadra:

Já sou velho e tive gosto.
Morro quando Deus quiser...
Duas coisas me acompanham:
Cavalo bom e mulher!

São também versos da musa do povo e inéditos:

Com cavalo e com mulher
Toda vida eu fui unido.
Cavalo bom tive muito
Por mulher eu sou perdido...

Fui à missa na Pendença,
Fui ao sermão na Jubaia.
Cavalo que não esquipa
Na minha mão sempre braia.

Quem quiser ser bem querido
Das morenas do sertão,
Nas costas de bom cavalo
De guarda-peito e gibão.

Chinela de sola e vira,
Espora de rosetão,
Chapéu novo na cabeça,
Redor da copa um cordão...


No seu cinismo de capadócio arrogante,
dizia o cantador alagoano Jaqueira:

Eu andei de deo em deo
E
desci da galho em galho.
Jota-a já, queira ou não queira,
Eu não gosto é de trabalho.
Por três coisas sou perdido:
Mulher, cavalo e baralho...

(Leonardo Mota. Sertão alegre)



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