terça-feira, 15 de abril de 2014

O compositor que nunca existiu



Chico por Soza

Durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), o compositor Chico Buarque tinha suas músicas censuradas e proibidas. Tanto assim, que se exilou na Itália, entre 1969 e 1970. Teve então, como sempre, uma ideia singular: passou a assinar suas músicas como Julinho da Adelaide, personagem fictício, é claro.

Veja a entrevista combinada entre Chico, digo Julinho da Adelaide, e o escritor Mário Prata, para o jornal Ultima Hora em setembro de 1974.

Fragmentos da entrevista


Capa do jornal Última Hora - setembro de 1974

O samba duplex e pragmático de Julinho da Adelaide

Nos bares do Rio de Janeiro, nas praias badaladas, na favela da Rocinha e mesmo na casa de alguns milionários, ou ainda em algumas delegacias de polícia, Júlio César Botelho de Oliveira talvez não seja muito conhecido. Mas, Julinho da Adelaide é figura das mais notórias, simpáticas e comentadas do momento. Não se admite mais uma festa ou rodada de samba sem a presença de Julinho da Adelaide. Seu nome passou das crônicas policiais para as sociais, quando cantores famosos começaram a se interessar pelo seu samba. Chico Buarque gravou Jorge Maravilha; o MPB4, O Milagre, e Nara Leão deverá gravar uma música nova.

Como começou a ficar conhecido em São Paulo, esteve aqui no começo da semana para tentar mostrar o seu trabalho nas casas de samba. Não lhe deram muita chance. Três dias depois, encontrei em cima da minha mesa um bilhete assinado por Julinho e que terminava assim: “e como a barra não está dando por aqui, eu e Leonel vamos amanhã para Portugal. Parece que a barra lá tá melhor pro meu samba”. Junto ao bilhete a fotografia de sua mãe, nos áureos tempos do Orfeu Negro, no Teatro Municipal do Rio.

Julinho da Adelaide: “Eu não estou acostumado com o clima de São Paulo. Devo dizer que esta é a segunda vez que venho. A primeira vez faz muito tempo, foi na época dos festivais. Inclusive, tenho um fato interessante para contar: eu estava na platéia, quando o Sérgio Ricardo jogou aquele violão. Acertou aqui, ó”.

Mário Prata: “Esta cicatriz é do violão?”

Julinho da Adelaide − É. Inclusive, eu pedi para não fotografar, por isso.

MP − E essa segunda vinda a São Paulo? Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com três músicas novas.

JA − Três não, tenho muito mais que três, devo dizer isso. Não tenho culpa se as pessoas pedem sempre as mesmas. Em geral, pedem Chama o Ladrão, Jorge Maravilha e O Milagre. Mas, eu tenho muito mais músicas. Chama o Ladrão teve um problema com a Censura e O Milagre teve também. Eu queria, inclusive, aproveitar e dizer que não quero criar nenhum problema com a Censura, porque, através do Leonel, tenho um diálogo muito bom com eles, entende? O Leonel, sendo meu procurador, me quebra todos os galhos em todos os sentidos.

MP − Fala um pouco da Adelaide.

JA − Adelaide foi a pessoa que me orientou, minha vida inteira.

MP − Existe um boato de que ela teria sido uma das mulheres do Vinícius.

JA − Eu não posso falar assim da minha mãe, não é? “Uma das mulheres do Vinícius”, o que é isso? Em todo o caso, que ela conheceu o Vinícius, conheceu. Minha mãe é uma mulher muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre, viu? Quando ela viajou para a Alemanha, ela casou com um luterano. O Leonel é luterano por causa disso. É loiro e é luterano. Ele agora alisou o cabelo, e está dizendo que é parecido com esse tal de Roberto Redford. Mas, ele não é muito parecido, não. O nariz dele é igual ao da minha mãe, grossão. Ele é loiro sarará, sabe? Parecido, fisicamente, com o Ademir da Guia. Só que agora alisou o cabelo e tá achando que é artista de cinema.

MP − Quem é que está cantando música sua, hoje, Julinho?

JA − O Chico Buarque cantou num show que ele fez no Rio. Foi muito bom, porque deu dinheiro na SBAT, o Jorge Maravilha. Tem também o MPB4 e a Nara Leão. Eu entreguei umas outras músicas aí, que não sei se estão cantando, pra uma porção de gente. Tenho vários estilos, sabe? Mandei música para o Tim Maia, para a Ângela Maria. Não sei se estão cantando, porque não tenho muito controle. O Leonel que sabe.

MP − Mas, você tem realmente uma produção muito boa ou está se utilizando de nomes como Chico e MPB4?

JA − Mas, ô cara, escuta. Você vai me desculpar, mas já disse que não sou cantor. Preciso dos cantores pra lançar meu nome, entende? O Chico Buarque eu não devo nada a ele, nem ele deve nada a mim. Ele tá faturando em cima do meu nome, e eu estou faturando em cima do nome dele. Acho que isso é normal. Não acho que seja aético da minha parte, entende? Eu sou é pragmático.

MP − E você já foi preso?

JA − Algumas vezes. Eu conto isso, inclusive, no samba Chama o Ladrão.

MP − Na medida em que você mesmo diz que é muito pragmático, esse negócio de carregar o nome da mãe não é uma jogada oportunista da sua parte? Pra sensibilizar uma parte do público?

JA − Não, de maneira nenhuma. Eu me chamo Julinho da Adelaide, porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Acontece que a minha mãe é mais famosa do que eu lá no Rio. Ainda é. Minha mãe é célebre. Eu vou te contar o que ela já fez. Minha mãe estava no primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer, que fazia o cenário do Orfeu no Municipal. Do Haroldo Costa, também. Ela conheceu mais intimamente o Oscar. Tanto é que há cinco ou seis anos atrás a gente morava ali na Favela da Rocinha, quando começaram a erguer o Hotel Nacional. Aquele redondo. Mamãe dizia pra mim: "Tá vendo, filho? Tá vendo, Julinho? Aquilo é homenagem do Oscar para mim". Inclusive, agora botaram uma porção de homenagens na Barra. Ela lembra dele muito bem. É claro que ela está mais velha agora, e não pode receber muita homenagem. Eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer pra ela, mas não vou tirar essa ilusão dela, né? É bonito ela ficar pensando assim. Mamãe tem muita imaginação. Mas, continuando, depois ela viajou com a Brasiliana, casou com o luterano, foi presa na fronteira do Tibet por causa de um monge, aprendeu a fazer cassulé e a feijoada branca. O feijão branco dela é conhecido lá no morro. Então, todo mundo perguntava assim: qual Julinho? O Julinho da Adelaide.

MP − Mas, a própria imprensa carioca está achando que você está usando o nome da sua mãe para se promover. Tanto é que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide.

JA − Leonel Kuntis. Mas, pode ser que daqui a uns tempos a Adelaide passe a ser a Adelaide do Julinho. Não tenho nada contra isso.

MP − O Chico tem cantado a sua música e tem dado a entender que a música é dele. Ele se refere a você como se você fosse uma figura mitológica.

JA − Não sei, rapaz. Essa pessoal que tem o nome feito, pode fazer muita coisa e não adianta eu ficar aqui reclamando, entende? Como eu já disse, sou pragmático. Eu preciso dele e ele de mim. Então, eu não vou me colocar contra ele como você está querendo. Talvez o dia que for mais conhecido, eu faça a mesma coisa. As pessoas têm que tirar proveito do que lhe cai nas mãos, não é? O Leonel que me disse isso.

Música que Julinho da Adelaide fez para o presidente Geisel,
Sem este saber, é claro...

Jorge Maravilha

Julinho de Adelaide

1974

Há nada como um tempo
Após um contratempo
Pro meu coração.
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não.
E como já dizia Jorge Maravilha,
Prenhe de razão,
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando.

Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta,
Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta. ( * )
Ela gosta do tango, do dengo,
Do mengo, domingo e de cócega.
Ela pega e me pisa, belisca.
Petisca, me arrisca e me enrosca.
Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta.

Há nada como um dia
Após o outro dia
Pro meu coração.
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não.
E como já dizia Jorge Maravilha,
Prenhe de razão,
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais sobrevoando.
Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta.

( * ) A filha do presidente, Amália Lucy (1945-), gostava das músicas do compositor e do cantor Chico Buarque de Holanda.



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