Chico por Soza
Durante a ditadura militar brasileira
(1964-1985), o compositor Chico Buarque tinha suas músicas censuradas e
proibidas. Tanto assim, que se exilou na Itália, entre 1969 e 1970. Teve então,
como sempre, uma ideia singular: passou a assinar suas músicas como Julinho da
Adelaide, personagem fictício, é claro.
Veja a entrevista combinada entre
Chico, digo Julinho da Adelaide, e o escritor Mário Prata, para o jornal Ultima
Hora em setembro de 1974.
Fragmentos da entrevista
O samba duplex e pragmático de Julinho da Adelaide
Nos bares do Rio de Janeiro, nas
praias badaladas, na favela da Rocinha e mesmo na casa de alguns milionários,
ou ainda em algumas delegacias de polícia, Júlio César Botelho de Oliveira
talvez não seja muito conhecido. Mas, Julinho da Adelaide é figura das mais
notórias, simpáticas e comentadas do momento. Não se admite mais uma festa ou
rodada de samba sem a presença de Julinho da Adelaide. Seu nome passou das
crônicas policiais para as sociais, quando cantores famosos começaram a se
interessar pelo seu samba. Chico Buarque gravou Jorge Maravilha; o MPB4, O
Milagre, e Nara Leão deverá gravar uma música nova.
Como começou a ficar conhecido em São Paulo , esteve aqui
no começo da semana para tentar mostrar o seu trabalho nas casas de samba. Não
lhe deram muita chance. Três dias depois, encontrei em cima da minha mesa um
bilhete assinado por Julinho e que terminava assim: “e como a barra não está
dando por aqui, eu e Leonel vamos amanhã para Portugal. Parece que a barra lá
tá melhor pro meu samba”. Junto ao bilhete a fotografia de sua mãe, nos áureos
tempos do Orfeu Negro, no Teatro Municipal do Rio.
Julinho da Adelaide: “Eu não
estou acostumado com o clima de São Paulo. Devo dizer que esta é a segunda vez
que venho. A primeira vez faz muito tempo, foi na época dos festivais.
Inclusive, tenho um fato interessante para contar: eu estava na platéia, quando
o Sérgio Ricardo jogou aquele violão. Acertou aqui, ó”.
Mário Prata: “Esta cicatriz é do violão?”
Julinho da Adelaide − É. Inclusive, eu pedi para não
fotografar, por isso.
MP − E essa segunda vinda a
São Paulo? Você está aqui profissionalmente? Eu soube que você está com três
músicas novas.
JA − Três não, tenho muito
mais que três, devo dizer isso. Não tenho culpa se as pessoas pedem sempre as
mesmas. Em geral, pedem Chama o Ladrão, Jorge Maravilha e O Milagre. Mas, eu
tenho muito mais músicas. Chama o Ladrão teve um problema com a Censura e
O Milagre teve também. Eu queria, inclusive, aproveitar e dizer que não quero
criar nenhum problema com a Censura, porque, através do Leonel, tenho um
diálogo muito bom com eles, entende? O Leonel, sendo meu procurador, me quebra
todos os galhos em todos os sentidos.
MP − Fala um pouco da Adelaide.
JA − Adelaide foi a pessoa que me orientou, minha vida
inteira.
MP − Existe um boato de que ela teria sido uma das
mulheres do Vinícius.
JA − Eu não posso falar
assim da minha mãe, não é? “Uma das mulheres do Vinícius”, o que é isso? Em
todo o caso, que ela conheceu o Vinícius, conheceu. Minha mãe é uma mulher
muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre, viu? Quando ela
viajou para a Alemanha, ela casou com um luterano. O Leonel é luterano por
causa disso. É loiro e é luterano. Ele agora alisou o cabelo, e está dizendo
que é parecido com esse tal de Roberto Redford. Mas, ele não é muito parecido,
não. O nariz dele é igual ao da minha mãe, grossão. Ele é loiro sarará, sabe?
Parecido, fisicamente, com o Ademir da Guia. Só que agora alisou o cabelo e tá
achando que é artista de cinema.
MP − Quem é que está cantando música sua, hoje, Julinho?
JA − O Chico Buarque cantou
num show que ele fez no Rio. Foi muito bom, porque deu dinheiro na SBAT, o
Jorge Maravilha. Tem também o MPB4 e a Nara Leão. Eu entreguei umas outras
músicas aí, que não sei se estão cantando, pra uma porção de gente. Tenho
vários estilos, sabe? Mandei música para o Tim Maia, para a Ângela Maria. Não
sei se estão cantando, porque não tenho muito controle. O Leonel que sabe.
MP − Mas, você tem realmente
uma produção muito boa ou está se utilizando de nomes como Chico e MPB4?
JA − Mas, ô cara, escuta.
Você vai me desculpar, mas já disse que não sou cantor. Preciso dos cantores
pra lançar meu nome, entende? O Chico Buarque eu não devo nada a ele, nem ele
deve nada a mim. Ele tá faturando em cima do meu nome, e eu estou faturando em
cima do nome dele. Acho que isso é normal. Não acho que seja aético da minha
parte, entende? Eu sou é pragmático.
MP − E você já foi preso?
JA − Algumas vezes. Eu conto isso, inclusive, no samba
Chama o Ladrão.
MP − Na medida em que você
mesmo diz que é muito pragmático, esse negócio de carregar o nome da mãe não é
uma jogada oportunista da sua parte? Pra sensibilizar uma parte do público?
JA − Não, de maneira
nenhuma. Eu me chamo Julinho da Adelaide, porque todo mundo só me chama assim
lá no morro. Acontece que a minha mãe é mais famosa do que eu lá no Rio. Ainda
é. Minha mãe é célebre. Eu vou te contar o que ela já fez. Minha mãe estava no
primeiro elenco do Orfeu Negro. Foi amiga íntima de Vinícius de Moraes, Antonio
Carlos Jobim e Oscar Niemeyer, que fazia o cenário do Orfeu no Municipal. Do
Haroldo Costa, também. Ela conheceu mais intimamente o Oscar. Tanto é que há
cinco ou seis anos atrás a gente morava ali na Favela da Rocinha, quando
começaram a erguer o Hotel Nacional. Aquele redondo. Mamãe dizia pra mim:
"Tá vendo, filho? Tá vendo, Julinho? Aquilo é homenagem do Oscar para
mim". Inclusive, agora botaram uma porção de homenagens na Barra. Ela
lembra dele muito bem. É claro que ela está mais velha agora, e não pode
receber muita homenagem. Eu estou sabendo que não é homenagem do Oscar Niemeyer
pra ela, mas não vou tirar essa ilusão dela, né? É bonito ela ficar pensando
assim. Mamãe tem muita imaginação. Mas, continuando, depois ela viajou com
a Brasiliana, casou com o luterano, foi presa na fronteira do Tibet por causa
de um monge, aprendeu a fazer cassulé e a feijoada branca. O feijão branco dela
é conhecido lá no morro. Então, todo mundo perguntava assim: qual Julinho? O
Julinho da Adelaide.
MP − Mas, a própria imprensa
carioca está achando que você está usando o nome da sua mãe para se promover.
Tanto é que o Leonel não se chama Leonel da Adelaide.
JA − Leonel Kuntis. Mas,
pode ser que daqui a uns tempos a Adelaide passe a ser a Adelaide do Julinho.
Não tenho nada contra isso.
MP − O Chico tem cantado a sua música e tem dado a
entender que a música é dele. Ele se refere a você como se você fosse uma
figura mitológica.
JA − Não sei, rapaz. Essa
pessoal que tem o nome feito, pode fazer muita coisa e não adianta eu ficar
aqui reclamando, entende? Como eu já disse, sou pragmático. Eu preciso dele e
ele de mim. Então, eu não vou me colocar contra ele como você está querendo.
Talvez o dia que for mais conhecido, eu faça a mesma coisa. As pessoas têm que
tirar proveito do que lhe cai nas mãos, não é? O Leonel que me disse isso.
Música que Julinho da Adelaide fez para o presidente
Geisel,
Sem este saber, é claro...
Jorge Maravilha
Julinho de Adelaide
1974
Há nada como um tempo
Após um contratempo
Pro meu coração.
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não.
E como já dizia Jorge Maravilha,
Prenhe de razão,
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando.
Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta,
Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta. ( * )
Ela gosta do tango, do dengo,
Do mengo, domingo e de cócega.
Ela pega e me pisa, belisca.
Petisca, me arrisca e me enrosca.
Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta.
Há nada como um dia
Após o outro dia
Pro meu coração.
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não.
E como já dizia Jorge Maravilha,
Prenhe de razão,
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais sobrevoando.
Você não gosta de mim,
Mas sua filha gosta.
( * ) A filha do presidente, Amália Lucy (1945-), gostava
das músicas do compositor e do cantor Chico Buarque de Holanda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário