sábado, 19 de abril de 2014

Um belo conto árabe

Radiá! Radiá!


Um dilúvio de lua cai da montanha. O silêncio, na claridade suave da tarde, era como uma dádiva de Allah sobre a terra. Parecia-me ouvir, ao longe, o doce som de flautas vibradas por artistas invisíveis.

À porta da tenda, surge, de repente, a figura altiva do quebir, chefe da caravana.

- Vamos, beduíno! – gritou, arrebatado. – A grande caravana vai partir! Iremos para além da Pérsia; atravessaremos a Índia; levaremos os nossos camelos até os confins da China e do Tibete. Terás a fortuna de conheceres as cidades e os recantos mais prodigiosos do Islã: encontrarás os mercadores mais ricos do mundo; os teus lucros serão fabulosos. Vamos! Por Allah, o Exaltado! A caravana vai partir!

Respondi:

- Sim, valente quebir! Sempre desejei conhecer as maravilhas desses países cheios de lendas e mistérios. Estou convencido de que essa longa e curiosa viagem seria para mim fonte de incalculáveis riquezas.

Mas...

Naquele momento a encantadora Radiá, com sua graça infinita de inum (fada), colocava cocrais (pulseiras de ouro ou marfim) de ouro em torno de seus tornozelos.

A caravana vai partir? Vai em busca da Riqueza? Deixá-la ir, a caravana...

Prefiro, ó quebir! continuar aqui, recostado nestas almofadas, vendo a querida Radiá prender colares de ouro em trono de seus tornozelos...

A baraca (bênção especial) protegia a minha confortável tenda na orla do deserto. O narguilé (peça usada pelos fumantes) embriagador parecia mais doce que o sorriso nos lábios da noiva apaixonada. Alguém chama por mim. Ouço o meu nome repetidas vezes. Reconheço a voz de um taleb (professor).

- Por que me procuras, ó venerável taleb? – perguntei.

- Vem comigo, jovem poeta! – respondeu o sábio. – O rei de Cabul e o imperador da China, em viagem para Meca, pararam, esta tarde, no oásis de Bled-Djerid (país das tâmaras). Falei em teu nome. Já leram os teus versos. Admiram-te, fazem questão de conhecer-te. Vamos até ao oásis antes que eles partam. Por allah! É uma oportunidade única em tua vida! Receberás as homenagens dos soberanos mais ricos e generosos! Serás o poeta mais afamado do mundo: Ficarás mais célebre do que Antar (poeta árabe notável) e mais invejado do que Moslim (também poeta).

- Sim, judicioso taleb! Sempre ambicionei receber as homenagens daqueles que têm em mãos o ouro e o poder. O imperador da China e o rei de Cabul são os monarcas mais ricos e mais generosos, entre quanto vivem sobre a face da terra. Recebido em audiência especial por esses soberanos, tornar-me-ei célebre. O meu nome, emoldurado pela glória, jamais sairia da memória dos homens.

Mas...

Naquele momento, a deliciosa Radiá cantava. A sua voz era tão meiga com a lua e mais doce que tâmaras brancas do Iêmen.

O Rei e o Imperador esperam por mim? Encontrarei no oásis de Bled-Djerid a Glória que deslumbra e seduz os mortais?

A Glória? Deixá-la ir, a Glória... Prefiro, ó taleb!, continuar aqui, recostado indolente sobre estas almofadas, ouvindo a querida Radiá cantar, com indizível ternura, os seus sonhos de amor...

Pouco faltava para a hora melancólica do ezzã (prece obrigatório ao nascer do dia). Uma poeira de luz envolvia a minha tenda, onde as sombras procuravam refúgio. Mac Allah! (Deus seja louvado) Chamam por mim, Quem será?

Abre-se a porta. Acha-se, diante de mim, o meu grande e dedicado amigo.

- Venho buscar-te, meu caro – exclamou, cheio de alegria. – Todos os habitantes da aldeia estão reunidos na mesquita. Mafoma, o enviado de Deus, vai falar aos fiéis, depois do ezzã. Aquele que ouvir as palavras do Profeta estará salvo e terá o seu nome incluído entre os bem-aventurados! Vem, ó irmão dos árabes, vem comigo!

Respondi:

- Sim, meu grande e incomparável amigo! Sempre almejei obter, pela mão do Enviado de Allah, a minha reabilitação aos olhos de Deus! Certo estou de que hoje na mesquita, entre cheiques (chefe de tribo) e ulemás (doutores), obterei a remissão de meus erros e a salvação de minh’alma. Ficaria, para sempre, livre do peso de meus pecados.

Mas...

Naquele momento a sombra do desejo aparecia, bem nítida, nos olhos negros de Radiá.

O Profeta vai falar na mesquita? Devo ouvir a sua palavra que redime e salva? A Salvação Eterna! Deixá-la ir, a Salvação Eterna...

Prefiro, ó inesquecível amigo!, continuar aqui, recostado indolente nestas almofadas, pois a sombra do desejo aparece, neste momento, bem nítida nos olhos negros e sedutores de Radiá...

Minha pobre tenda está triste e vazia na orla do deserto. Radiá desapareceu de meus olhos como um asfir (pássaro verde do Sul) que fugisse da prisão.

De nosso amor, que parecia eterno, restam apenas as tâmaras amargas da saudade.

Radiá! Radiá! “Chovam lírios e rosas em teu colo! Chovam hinos de glórias na tua alma!” Lembra-te, Radiá! Por ti sacrifiquei a Riqueza, a Glória, a Salvação Eterna!...

Resta-me, ainda, a Vida!

Sim a Vida... Deixá-la ir, a Vida...

(Do livro "Minha Vida Querida", de Malba Tahan)


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