Um dilúvio de lua cai da
montanha. O silêncio, na claridade suave da tarde, era como uma dádiva de Allah
sobre a terra. Parecia-me ouvir, ao longe, o doce som de flautas vibradas por
artistas invisíveis.
À porta da tenda, surge, de
repente, a figura altiva do quebir, chefe da caravana.
- Vamos, beduíno! – gritou,
arrebatado. – A grande caravana vai partir! Iremos para além da Pérsia;
atravessaremos a Índia; levaremos os nossos camelos até os confins da China e
do Tibete. Terás a fortuna de conheceres as cidades e os recantos mais
prodigiosos do Islã: encontrarás os mercadores mais ricos do mundo; os teus
lucros serão fabulosos. Vamos! Por Allah, o Exaltado! A caravana vai partir!
Respondi:
- Sim, valente quebir!
Sempre desejei conhecer as maravilhas desses países cheios de lendas e
mistérios. Estou convencido de que essa longa e curiosa viagem seria para mim
fonte de incalculáveis riquezas.
Mas...
Naquele momento a
encantadora Radiá, com sua graça infinita de inum (fada), colocava cocrais
(pulseiras de ouro ou marfim) de ouro em torno de seus tornozelos.
A caravana vai partir? Vai
em busca da Riqueza? Deixá-la ir, a caravana...
Prefiro, ó quebir!
continuar aqui, recostado nestas almofadas, vendo a querida Radiá prender
colares de ouro em trono de seus tornozelos...
A baraca (bênção especial)
protegia a minha confortável tenda na orla do deserto. O narguilé (peça usada
pelos fumantes) embriagador parecia mais doce que o sorriso nos lábios da noiva
apaixonada. Alguém chama por mim. Ouço o meu nome repetidas vezes. Reconheço a
voz de um taleb (professor).
- Por que me procuras, ó
venerável taleb? – perguntei.
- Vem comigo, jovem poeta!
– respondeu o sábio. – O rei de Cabul e o imperador da China, em viagem para
Meca, pararam, esta tarde, no oásis de Bled-Djerid (país das tâmaras). Falei em
teu nome. Já leram os teus versos. Admiram-te, fazem questão de conhecer-te.
Vamos até ao oásis antes que eles partam. Por allah! É uma oportunidade única
em tua vida! Receberás as homenagens dos soberanos mais ricos e generosos!
Serás o poeta mais afamado do mundo: Ficarás mais célebre do que Antar (poeta
árabe notável) e mais invejado do que Moslim (também poeta).
- Sim, judicioso taleb!
Sempre ambicionei receber as homenagens daqueles que têm em mãos o ouro e o
poder. O imperador da China e o rei de Cabul são os monarcas mais ricos e mais
generosos, entre quanto vivem sobre a face da terra. Recebido em audiência
especial por esses soberanos, tornar-me-ei célebre. O meu nome, emoldurado pela
glória, jamais sairia da memória dos homens.
Mas...
Naquele momento, a
deliciosa Radiá cantava. A sua voz era tão meiga com a lua e mais doce que
tâmaras brancas do Iêmen.
O Rei e o Imperador esperam
por mim? Encontrarei no oásis de Bled-Djerid a Glória que deslumbra e seduz os
mortais?
A Glória? Deixá-la ir, a
Glória... Prefiro, ó taleb!, continuar aqui, recostado indolente sobre estas
almofadas, ouvindo a querida Radiá cantar, com indizível ternura, os seus
sonhos de amor...
Pouco faltava para a hora
melancólica do ezzã (prece obrigatório ao nascer do dia). Uma poeira de luz
envolvia a minha tenda, onde as sombras procuravam refúgio. Mac Allah! (Deus
seja louvado) Chamam por mim, Quem será?
Abre-se a porta. Acha-se,
diante de mim, o meu grande e dedicado amigo.
- Venho buscar-te, meu caro
– exclamou, cheio de alegria. – Todos os habitantes da aldeia estão reunidos na
mesquita. Mafoma, o enviado de Deus, vai falar aos fiéis, depois do ezzã.
Aquele que ouvir as palavras do Profeta estará salvo e terá o seu nome incluído
entre os bem-aventurados! Vem, ó irmão dos árabes, vem comigo!
Respondi:
- Sim, meu grande e incomparável amigo! Sempre almejei
obter, pela mão do Enviado de Allah, a minha reabilitação aos olhos de Deus!
Certo estou de que hoje na mesquita, entre cheiques (chefe de tribo) e ulemás
(doutores), obterei a remissão de meus erros e a salvação de minh’alma.
Ficaria, para sempre, livre do peso de meus pecados.
Mas...
Naquele momento a sombra do
desejo aparecia, bem nítida, nos olhos negros de Radiá.
O Profeta vai falar na
mesquita? Devo ouvir a sua palavra que redime e salva? A Salvação Eterna!
Deixá-la ir, a Salvação Eterna...
Prefiro, ó inesquecível
amigo!, continuar aqui, recostado indolente nestas almofadas, pois a sombra do
desejo aparece, neste momento, bem nítida nos olhos negros e sedutores de
Radiá...
Minha pobre tenda está
triste e vazia na orla do deserto. Radiá desapareceu de meus olhos como um
asfir (pássaro verde do Sul) que fugisse da prisão.
De nosso amor, que parecia
eterno, restam apenas as tâmaras amargas da saudade.
Radiá! Radiá! “Chovam
lírios e rosas em teu colo! Chovam hinos de glórias na tua alma!” Lembra-te,
Radiá! Por ti sacrifiquei a Riqueza, a Glória, a Salvação Eterna!...
Resta-me, ainda, a Vida!
Sim a Vida... Deixá-la ir,
a Vida...
(Do livro "Minha Vida Querida", de Malba Tahan)
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