terça-feira, 22 de abril de 2014

Receita para lavar palavra suja

Mergulhar a palavra em água sanitária.
Depois de dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras, quando alvejadas ao sol,
adquirem consistência de certeza.
Por exemplo, a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso,
o que se recomenda esfregar
e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que resistem a esses cuidados,
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar piedade foi sempre em vão.
Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida que são alvejadas
soltam um líquido corrosivo
que atende pelo nome de amargura,
que é capaz de esvaziar o vigor da língua.
O aconselhamento nesse caso é mantê-lo sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.
Agora, se o que você quer é somente
aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo, neste caso, é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra
e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é evitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.
Muito importante na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misturem em seus gestos,
que passeie pela expressão dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite,
não ao seu lado mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar essa convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.


(Viviane Mosé – em “O Globo”, de 05.07.2003)
Viviane Mosé é professora de filosofia, psicanalista e poeta.


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