A Burocracia
Nos tempos da ditadura militar,
em meados de 1973, um preso político uruguaio, Juan José Noueched, sofreu uma
sanção de cinco dias: cinco dias sem visita nem recreio, cinco dias sem nada,
por violação do regulamento. Do ponto de vista do capitão que aplicou a sanção,
o regulamento não deixava margem de dúvida. O regulamento estabelecia
claramente que os presos deviam caminhar em fila e com as mãos nas costas.
Noueched tinha sido castigado por estar com apenas uma das mãos nas costas.
Noueched era maneta.
Tinha sido preso em duas etapas.
Primeiro tinham prendido seu braço. Depois, ele. O braço caiu em Montevidéu. Noueched vinha escapando,
correndo sem parar, quando o policial que o perseguia conseguiu agarrá-lo e
gritou: "Teje preso!", e ficou com o braço na mão. O resto de
Noueched caiu preso um ano e meio depois, em Paysandu.
Na cadeia, Noueched quis recuperar o braço perdido:
− Faça um requerimento − disseram a ele.
Ele explicou que não tinha lápis:
− Faça um requerimento de lápis − disseram.
Então passou a ter lápis, mas não tinha papel. − Faça um requerimento de papel
− disseram a ele.
Quando finalmente teve lápis e papel, formulou seu
requerimento de braço.
Tempos depois, responderam. Não. Não era possível: o braço
estava em outro expediente.
Ele tinha sido processado pela justiça militar. O braço, pela justiça civil.
(Da obra “O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano, 2000)
A Função da Arte
Diego não conhecia o mar. O pai,
Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim
alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na
frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que
o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo,
gaguejando, pediu ao pai:
− Me ajuda a olhar?
(Da obra “O Livro dos
Abraços”, de Eduardo Galeano, 2000)
Eduardo
Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 3 de setembro de 1940 e faleceu na mesma cidade em 19 de abril de 2015. Foi jornalista e esteve no
exílio na década de 70 e começo da década de 80. É autor de uma vasta obra
traduzida em mais de vinte línguas. Recebeu o Prêmio Casa de las Américas em
1975 e 1978 e o prêmio Aloa dos editores dinamarqueses, em 1993. Recebeu ainda
os prêmios American Book Award (Washington University, USA) em 1989 e Prêmio à
Liberdade da Cultura, outorgado pela Fundação Lannan, dos Estados Unidos.
Escreveu, entre muitos outros livros, a trilogia Memória do fogo, As veias
abertas da América Latina, O livro dos abraços, Palavras andantes, Dias e
noites de amor e de guerra, De pernas pro ar, Futebol ao sol e à sombra e
Mulheres.
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