sábado, 12 de abril de 2014

Textos de Eduardo Galeano

A Burocracia

Nos tempos da ditadura militar, em meados de 1973, um preso político uruguaio, Juan José Noueched, sofreu uma sanção de cinco dias: cinco dias sem visita nem recreio, cinco dias sem nada, por violação do regulamento. Do ponto de vista do capitão que aplicou a sanção, o regulamento não deixava margem de dúvida. O regulamento estabelecia claramente que os presos deviam caminhar em fila e com as mãos nas costas. Noueched tinha sido castigado por estar com apenas uma das mãos nas costas.

Noueched era maneta.

Tinha sido preso em duas etapas. Primeiro tinham prendido seu braço. Depois, ele. O braço caiu em Montevidéu.  Noueched vinha escapando, correndo sem parar, quando o policial que o perseguia conseguiu agarrá-lo e gritou: "Teje preso!", e ficou com o braço na mão. O resto de Noueched caiu preso um ano e meio depois, em Paysandu.

Na cadeia, Noueched quis recuperar o braço perdido:

− Faça um requerimento − disseram a ele.

Ele explicou que não tinha lápis:

− Faça um requerimento de lápis − disseram.

Então passou a ter lápis, mas não tinha papel. − Faça um requerimento de papel − disseram a ele.

Quando finalmente teve lápis e papel, formulou seu requerimento de braço.

Tempos depois, responderam. Não. Não era possível: o braço estava em outro expediente.

Ele tinha sido processado pela justiça militar. O braço, pela justiça civil.

(Da obra “O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano, 2000)

A Função da Arte

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

− Me ajuda a olhar?

(Da obra “O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano, 2000)


Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 3 de setembro de 1940 e faleceu na mesma cidade em 19 de abril de 2015. Foi jornalista e esteve no exílio na década de 70 e começo da década de 80. É autor de uma vasta obra traduzida em mais de vinte línguas. Recebeu o Prêmio Casa de las Américas em 1975 e 1978 e o prêmio Aloa dos editores dinamarqueses, em 1993. Recebeu ainda os prêmios American Book Award (Washington University, USA) em 1989 e Prêmio à Liberdade da Cultura, outorgado pela Fundação Lannan, dos Estados Unidos. Escreveu, entre muitos outros livros, a trilogia Memória do fogo, As veias abertas da América Latina, O livro dos abraços, Palavras andantes, Dias e noites de amor e de guerra, De pernas pro ar, Futebol ao sol e à sombra e Mulheres. 

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