Otto Lara Resende
Viu João três vezes. João não
a viu. No quarto encontro, achou jeito de lhe falar a sós.
– Você
é um homem diferente – disse ela, debruçando-se sobre a máquina de
escrever.
João,
julgando ver-se, viu-a pela primeira vez: o nariz fremente, o cabelo
vulgarmente castanho, toda a sua fisionomia reclamando a atenção que não lhe
dera. Uma moça como tantas outras. João escutou-a com benevolência, depois com
interesse.
– É
uma questão de fluido, entende? Você não tomou conhecimento de minha presença,
mas eu sei quem você é – ela sorriu de boca fechada, os lábios
ansiosos filtrando um esforço de comunicação.
– Uma questão de
fluido – disse João, vagamente.
– Por
que é que você nunca me deu a menor "bola"? Sei que não sou bonita,
mas me considero uma moça interessante. Não tem importância se você não acha.
Quando vi você pela primeira vez, entendi tudo! Tudo! Sei direitinho o que você
é.
– Então me diga,
pitonisa – João interrompeu-a, bem-humorado.
Evidentemente,
ela estava um pouquinho encabulada. Tinha o que lhe dizer, e não se animava,
submissa ao pudor ou às conveniências.
– Sou
um homem a quem tudo se pode dizer – João encorajou-a, satisfeito com
a fórmula.
– Eu sei. Olhe: isto
nunca me aconteceu.
Pausa.
Suas mãos de dedos longos - mãos bonitas - estariam
impacientes, enfáticas. E seus olhos naturalmente apagados eram agora
expectantes e lisonjeadores.
– Diga. Não tenha medo – João
animou-a.
Ela:
– Medo,
eu? De você? Nunca. Não sei não, mas eu gostaria tanto! Bom, é melhor não
falar. Você vai fazer mau juízo de mim.
De
pé, João a observava com espanto. Evitou olhá-la nos olhos. Fixou-se nas mãos,
que pediram um cigarro e, nervosas, o acenderam.
– Se
quiser, faça mau juízo. Vou dizer. Digo? Digo, sim. Você é diferente de todos
os homens que já vi, dos que me cortejam. Outro dia, sabe? Foi outro dia mesmo.
Sonhei com você, não é engraçado?
– Freud explica isso – João
perturbou-se.
– Pois
é. No dia seguinte, botei um vestido novo, aquele amarelinho, para comemorar a
minha felicidade. Preparei-me toda, e você não apareceu.
Ela baixou os olhos, amuada.
– Minha
filha – disse João cavalheirescamente – eu não mereço. É muita
honra para um pobre marquês – depois, curioso: – Mas
diferente como?
– Ora!
Não é como os outros. Eu sinto, entende? Que não é. Seu jeito, seu olhar, tudo
me diz. Pelo amor de Deus, não vá pensar que sou uma mulher leviana. Pode ser
loucura minha, mas eu não aguentava mais, precisava lhe dizer essas coisas.
Estavam aqui – e, erguendo a cabeça, apontou a garganta nua, o
pescoço de tendões esticados. – Isso nunca me aconteceu. Pode pensar
o que quiser de mim, tinha de dizer. Você jura que não vai contar a ninguém?
– Juro – João
estendeu a mão sobre uma Bíblia imaginária.
– Está
jurado, hem! Agora, você pode fazer de mim a mais infeliz de todas as
mulheres. Está em suas mãos. Mas meu coração não se engana: você é diferente.
O
contínuo entrou na sala carregando um monte de pastas para o arquivo. Ela
recomeçou a bater à maquina. Dez minutos depois, sem mais nenhuma palavra, João
retirou-se, tinha que sair à rua, o dever o chamava. Discretamente, passou o
pente no cabelo. João, o diferente.
À
porta do café, olhou-se no espelho com amizade e confiança. Saiu andando de
passo firme. Uma brisa carinhosa atirou sua gravata para cima do ombro
esquerdo. Deixou ficar e começou a assobiar uma ária improvisada, mas tão
alegre que inundou toda a rua de felicidade.
Sentada
diante da máquina de escrever, ela interrompeu o trabalho para escovar os
cabelos vulgarmente castanhos. Molhou a ponta do dedo na língua e passou-o
sobre as sobrancelhas depiladas. Interrogou-se ao espelhinho que trazia na
gaveta: não se achou nem feia nem bonita. Uma mulher, todavia interessante.
Secretária de profissão; estado civil, solteira; idade, vinte e sete anos. E à
noite, trancada no quarto, chorava sem saber por quê! Uma mulher entre tantas:
um pouco dentuça, os olhos superficiais e sem segredo. A cor de sua tez não a
encorajava – e sobretudo a boca quase inexistente, devorada por uns lábios
ávidos. A testa alta demais, pouco feminina.
Recomeçava
a bater à maquina, quando entrou Pedro, que há quinze dias ela viu pela
primeira vez, no escritório em que contratara o novo emprego. Pedro apanhou no
armário algumas folhas de papel, deu com o olhar dela, não vago, mas cobiçoso.
– Então? – fez
Pedro, que era extrovertido.
Ela
empinou o busto, ajeitou a blusa na cintura, olhou-o bem nos olhos, animando-o
a sentar-se na poltrona ao lado.
– Pedro – disse
ela, com um leve toque de emoção na voz. – Posso dizer uma coisa? Sei
que não devo dizer. Você vai fazer mau juízo de mim.
– Diga – pediu
Pedro, alegremente.
– Você é um homem
diferente – disse ela.
Otto Lara Resende
Viu João três vezes. João não
a viu. No quarto encontro, achou jeito de lhe falar a sós.
– Você
é um homem diferente – disse ela, debruçando-se sobre a máquina de
escrever.
João,
julgando ver-se, viu-a pela primeira vez: o nariz fremente, o cabelo
vulgarmente castanho, toda a sua fisionomia reclamando a atenção que não lhe
dera. Uma moça como tantas outras. João escutou-a com benevolência, depois com
interesse.
– É
uma questão de fluido, entende? Você não tomou conhecimento de minha presença,
mas eu sei quem você é – ela sorriu de boca fechada, os lábios
ansiosos filtrando um esforço de comunicação.
– Uma questão de
fluido – disse João, vagamente.
– Por
que é que você nunca me deu a menor "bola"? Sei que não sou bonita,
mas me considero uma moça interessante. Não tem importância se você não acha.
Quando vi você pela primeira vez, entendi tudo! Tudo! Sei direitinho o que você
é.
– Então me diga,
pitonisa – João interrompeu-a, bem-humorado.
Evidentemente,
ela estava um pouquinho encabulada. Tinha o que lhe dizer, e não se animava,
submissa ao pudor ou às conveniências.
– Sou
um homem a quem tudo se pode dizer – João encorajou-a, satisfeito com
a fórmula.
– Eu sei. Olhe: isto
nunca me aconteceu.
Pausa.
Suas mãos de dedos longos - mãos bonitas - estariam
impacientes, enfáticas. E seus olhos naturalmente apagados eram agora
expectantes e lisonjeadores.
– Diga. Não tenha medo – João
animou-a.
Ela:
– Medo,
eu? De você? Nunca. Não sei não, mas eu gostaria tanto! Bom, é melhor não
falar. Você vai fazer mau juízo de mim.
De
pé, João a observava com espanto. Evitou olhá-la nos olhos. Fixou-se nas mãos,
que pediram um cigarro e, nervosas, o acenderam.
– Se
quiser, faça mau juízo. Vou dizer. Digo? Digo, sim. Você é diferente de todos
os homens que já vi, dos que me cortejam. Outro dia, sabe? Foi outro dia mesmo.
Sonhei com você, não é engraçado?
– Freud explica isso – João
perturbou-se.
– Pois
é. No dia seguinte, botei um vestido novo, aquele amarelinho, para comemorar a
minha felicidade. Preparei-me toda, e você não apareceu.
Ela baixou os olhos, amuada.
– Minha
filha – disse João cavalheirescamente – eu não mereço. É muita
honra para um pobre marquês – depois, curioso: – Mas
diferente como?
– Ora!
Não é como os outros. Eu sinto, entende? Que não é. Seu jeito, seu olhar, tudo
me diz. Pelo amor de Deus, não vá pensar que sou uma mulher leviana. Pode ser
loucura minha, mas eu não aguentava mais, precisava lhe dizer essas coisas.
Estavam aqui – e, erguendo a cabeça, apontou a garganta nua, o
pescoço de tendões esticados. – Isso nunca me aconteceu. Pode pensar
o que quiser de mim, tinha de dizer. Você jura que não vai contar a ninguém?
– Juro – João
estendeu a mão sobre uma Bíblia imaginária.
– Está
jurado, hem! Agora, você pode fazer de mim a mais infeliz de todas as
mulheres. Está em suas mãos. Mas meu coração não se engana: você é diferente.
O
contínuo entrou na sala carregando um monte de pastas para o arquivo. Ela
recomeçou a bater à maquina. Dez minutos depois, sem mais nenhuma palavra, João
retirou-se, tinha que sair à rua, o dever o chamava. Discretamente, passou o
pente no cabelo. João, o diferente.
À
porta do café, olhou-se no espelho com amizade e confiança. Saiu andando de
passo firme. Uma brisa carinhosa atirou sua gravata para cima do ombro
esquerdo. Deixou ficar e começou a assobiar uma ária improvisada, mas tão
alegre que inundou toda a rua de felicidade.
Sentada
diante da máquina de escrever, ela interrompeu o trabalho para escovar os
cabelos vulgarmente castanhos. Molhou a ponta do dedo na língua e passou-o
sobre as sobrancelhas depiladas. Interrogou-se ao espelhinho que trazia na
gaveta: não se achou nem feia nem bonita. Uma mulher, todavia interessante.
Secretária de profissão; estado civil, solteira; idade, vinte e sete anos. E à
noite, trancada no quarto, chorava sem saber por quê! Uma mulher entre tantas:
um pouco dentuça, os olhos superficiais e sem segredo. A cor de sua tez não a
encorajava – e sobretudo a boca quase inexistente, devorada por uns lábios
ávidos. A testa alta demais, pouco feminina.
Recomeçava
a bater à maquina, quando entrou Pedro, que há quinze dias ela viu pela
primeira vez, no escritório em que contratara o novo emprego. Pedro apanhou no
armário algumas folhas de papel, deu com o olhar dela, não vago, mas cobiçoso.
– Então? – fez
Pedro, que era extrovertido.
Ela
empinou o busto, ajeitou a blusa na cintura, olhou-o bem nos olhos, animando-o
a sentar-se na poltrona ao lado.
– Pedro – disse
ela, com um leve toque de emoção na voz. – Posso dizer uma coisa? Sei
que não devo dizer. Você vai fazer mau juízo de mim.
– Diga – pediu
Pedro, alegremente.
– Você é um homem
diferente – disse ela.
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