sexta-feira, 16 de maio de 2014

A ponte

         

O comboio saiu do túnel para a manhã luminosa. Mário perguntou ao chefe de trem:

- Que horas são?

O homem tirou do bolso o relógio de platina e olhou o mostrador:

- Son las cinco de la tarde.

- Por que estamos tão atrasados?

- Porque levamos no trem o cadáver de um toureiro.

- Ah!

- Um touro rasgou-lhe o estômago com as aspas.

Mário olhou para fora. Reconhecia as paisagens da infância.

- Que é isso no peito? - perguntou o chefe de trem.

Mário abriu mais a camisa e disse:

- Uma tatuagem. Uma flor. É para a minha namorada que está me esperando do outro lado da ponte.

- Quantos anos você tem, menino?

- Vinte.

- Em que trabalha?

- Sou marinheiro.

- Donde vens?

- Das Índias.

O homem sacudiu lentamente a cabeça, compreendendo. Depois sumiu-se. O trem apitou. Mário meteu a cabeça para fora do carro e avistou a estação. Lá estava o boné vermelho do agente, o velho sino, a tabuleta com o nome da vila...

O trem parou, resfolegando como uma besta cansada. Mário precipitou-se para fora do carro, saltou para a plataforma.

- E a sua bagagem? - perguntou alguém.

Ele soltou uma risada.

- Não tenho. Só essa flor.

Mostrou a tatuagem. Respirou o ar que cheirava a folhas secas queimadas. Devia ser abril. Desceu apressado a encosta, acenando para os conhecidos. De todos os lados brotavam vozes: “O Mário voltou!” As vozes espraiavam-se pelo vale, subiam os cerros, o eco as repetia longe. “O Mário voltou... ou... ou... ou...”

Mário sentia no corpo a força dum potro. Não se conteve: rompeu a correr. Bebia o vento como quem bebe água. Avistou longe o vulto da mãe, negro e imóvel diante da casa. Ela o esperava. Nada tinha mudado.

Viu a ponte e estacou, temendo que Antônia não o estivesse esperando. Seu coração teve um súbito desfalecimento. Mas não! Lá estava ela parada do outro lado da ponte de pedra, o vento modelava-lhe as formas, soprava-lhe os cabelos, seu corpo dourado resplandecia. Pomona!

Mário abriu os braços e, correndo e sorrindo, cruzou a ponte.

(Do livro “Fantoches”, de Érico Veríssimo)


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