O
feijão e as carnes ficaram de molho desde a véspera. As laranjas escolhidas, a
farinha torrada, o limãozinho a postos, as cachaças – no plural, porque tem a
boa pra batida e tem a purinha pra um minuto antes de cair de boca -, a
pimenta, os engradados de cerveja... Engradados? Eram engradados, sim. Tu não
tá lembrado porque a memória da classe média diminuiu junto com a queda do seu
poder aquisitivo.
Domingo
de Fla-Flu e a moçada se reunindo pra mais uma imortal feijoada. Chegava a ser
um troço meio ritualístico, mas e daí? Que que o distinto tem contra um ritual
que inclui cachaça, à sombra das goiabeiras em flor, piadas e mulher?
− Ô
Anacleto, tira esse paletó!
− Manda
o geleiro colocar as pedras no tanque com as cervejas.
− Seu
Aguiar, tomei a liberdade de trazer uma caninha de alambique. É lá da minha
terra, coisa fina...
E
por aí afora... Era uma época, meus prezados, em que o – hoje chamado – status
de uma família era medido pelo esplendor da cascata de camarão nos
aniversários, e não pelo fato de residir, comendo sanduíche de mortadela, num
dos sala-pinico-e-fogareiro do Edifício Struvenga du Marquis de Sade, com
jardins de isopor e chafariz de acrílico, vendo-se na entrada a pitoresca
escultura da cabeça do referido marquês (ou da struvenga dele). Resumindo: os
Sérgios Dourados da vida ainda não haviam começado (justiça seja feita: com a
prestimosa colaboração das autoridades!) a destruir o corpo e a alma do Rio.
Recadinho:
cume, ô católicos? Vamo reagir que agora foi com a alma. Se o corpo sifu, não
há problema – contanto que não seja o de vocês – mas eu pergunto: e a alma? E A
ALMA, POMBA?
Onde
é que eu tava mesmo?
− Com
a boca cheia de cabelo!
Pois
é. Num domingo de feijoada e Fla-Flu, os homens tavam sentados nuns bancos
verdes que ficavam embaixo das goiabeiras e, enquanto a batidinha escorregava,
o Penteado, tremendo gozador, sugeriu:
− Vamos
eleger a mulher ideal!
Todos
acharam a ideia encantadora, menos o Anacleto, que continuava de paletó:
− Essa
brincadeira... conheço meu gado... a Heronda é uma leoa.
De
fato. Com espessos cabelos avermelhados, grossas sobrancelhas, indisfarçável
buço e pelos nas pernas robustas, a Heronda lembrava um pouco o mamífero acima.
E morria de ciúmes do Anaca, apelido posto, carinhosamente, pela própria.
− Deixa
disso, Anacleto. E tira esse paletó, rapaz...
Penteado
organizava:
− A
gente vai pegando uma parte de cada uma. E tem o seguinte: eleição livre, voto
direto!
Dá
uma nostalgia, né?
Tio
Odorico, meio afoito, abriu o marcador:
− As
coxas da Renata Fronzi!
Meu
avô, com a gravidade que o momento exigia do chefe da casa, sugeriu:
− A
voz da Ísis de Oliveira.
Alguém,
após cuspir um carocinho de limão, perguntou:
− Não
vai ter nada da Virgínia Lane? Que que tua acha, Anacleto?
− Sei
lá... essa brincadeira... a Heronda... sei lá...
Um
grande momento da votação: a bunda. Meu primo Esmeraldo, conhecido pelas
domésticas da Penha como Simpatia-é-quase-Amor, pigarreou e lascou:
− Olha,
pessoal... Eu não sei se vocês vão achar meio fora de jogada, mas pra bunda eu
voto, com todo o respeito, na arrumadeira aqui da casa, a Maria Luísa.
Verdadeira
aclamação. O pai do Esmeraldo não se conteve:
− Tô
orgulhoso de você, meu filho. Deus é testemunha de que...
Parou
a frase no meio, com certeza embaraçado de tomar o Santo Nome num assunto – pra
sermos precisos – tão bunda.
E
a brincadeira foi em
frente. Quando a mulher tava prontinha, com os seios da
Isolda (que morava em frente), o umbigo da Isa Rodrigues, tudo certo, o
Penteado lembrou:
− Pô,
esquecemos do rosto!
Justamente
no rosto, o Anacleto, já sem paletó, não aguentou. Era doido pela Eliana*.
Dizia mesmo que “era incrível ela topar aquela múmia”, referindo-se ao Renato
Murce, que acabava pagando o pato. Depois de um grande gole, falou grosso:
− Deixa
comigo, o rosto é comigo!
− Rosto
de quem, Anaca?
Era
a Heronda, de mãos nas cadeiras, cabelos e pelos já se eriçando, mais leoa do
que nunca.
Anacleto
matou no peito, suspirou e chutou:
− Rosto...
Em matéria de rosto, eu fico com o do Belini.*
E
levantando-se, à sombra das goiabeiras em flor, guimba de Astória no canto da
boca, fez o convite, olhando pra dentro do copo:
− Senta
aqui, nega. A gente tá brincando de viado.
*****
Crônica de Aldir Blanc do livro“Rua dos Artistas e
Arredores”.
*Eliana
Macedo, atriz das chanchadas da Atlântida, casada com Renato Murce.
*Belini,
zagueiro do Vasco e da seleção brasileira campeã mundial de 1958.
Aldir Blanc por Baptistão
Esta crônica, que reproduzo
integralmente a seguir foi extraída do delicioso livro “Rua dos Artistas e
Arredores” (depois rebatizado de “Rua dos Artistas e transversais”), do grande
Aldir Blanc. Após ter sido publicada na edição do Pasquim de nº 341, é uma
história que mostra o espírito despojado e sem frescuras do carioca e onde,
mesmo que você não conheça o Rio, dá para perceber com toda a clareza a
"evolução" em nome do progresso, as mudanças de comportamento (apesar
de algumas coisas resistirem bravamente à passagem do tempo) e, o pior de tudo,
a transformação sofrida por uma cidade que já foi muito mais maravilhosa do que
já é.
Se você conhece o Aldir apenas por
sua parceria com, o também brilhante, João Bosco, ou por ser um dos maiores
letristas da música popular brasileira, vou pegar leve e só digo que você não
sabe o que está perdendo. Mas, na pior das hipóteses, se você nunca ouviu o seu
nome, eu lhe pergunto: Em que planeta você vive, cara pálida?
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