segunda-feira, 12 de maio de 2014

À sombra das goiabeiras em flor



O feijão e as carnes ficaram de molho desde a véspera. As laranjas escolhidas, a farinha torrada, o limãozinho a postos, as cachaças – no plural, porque tem a boa pra batida e tem a purinha pra um minuto antes de cair de boca -, a pimenta, os engradados de cerveja... Engradados? Eram engradados, sim. Tu não tá lembrado porque a memória da classe média diminuiu junto com a queda do seu poder aquisitivo.

Domingo de Fla-Flu e a moçada se reunindo pra mais uma imortal feijoada. Chegava a ser um troço meio ritualístico, mas e daí? Que que o distinto tem contra um ritual que inclui cachaça, à sombra das goiabeiras em flor, piadas e mulher?

− Ô Anacleto, tira esse paletó!

− Manda o geleiro colocar as pedras no tanque com as cervejas.

− Seu Aguiar, tomei a liberdade de trazer uma caninha de alambique. É lá da minha terra, coisa fina...

E por aí afora... Era uma época, meus prezados, em que o – hoje chamado – status de uma família era medido pelo esplendor da cascata de camarão nos aniversários, e não pelo fato de residir, comendo sanduíche de mortadela, num dos sala-pinico-e-fogareiro do Edifício Struvenga du Marquis de Sade, com jardins de isopor e chafariz de acrílico, vendo-se na entrada a pitoresca escultura da cabeça do referido marquês (ou da struvenga dele). Resumindo: os Sérgios Dourados da vida ainda não haviam começado (justiça seja feita: com a prestimosa colaboração das autoridades!) a destruir o corpo e a alma do Rio.

Recadinho: cume, ô católicos? Vamo reagir que agora foi com a alma. Se o corpo sifu, não há problema – contanto que não seja o de vocês – mas eu pergunto: e a alma? E A ALMA, POMBA?

Onde é que eu tava mesmo?

− Com a boca cheia de cabelo!

Pois é. Num domingo de feijoada e Fla-Flu, os homens tavam sentados nuns bancos verdes que ficavam embaixo das goiabeiras e, enquanto a batidinha escorregava, o Penteado, tremendo gozador, sugeriu:

− Vamos eleger a mulher ideal!

Todos acharam a ideia encantadora, menos o Anacleto, que continuava de paletó:

− Essa brincadeira... conheço meu gado... a Heronda é uma leoa.

De fato. Com espessos cabelos avermelhados, grossas sobrancelhas, indisfarçável buço e pelos nas pernas robustas, a Heronda lembrava um pouco o mamífero acima. E morria de ciúmes do Anaca, apelido posto, carinhosamente, pela própria.

− Deixa disso, Anacleto. E tira esse paletó, rapaz...

Penteado organizava:

− A gente vai pegando uma parte de cada uma. E tem o seguinte: eleição livre, voto direto!

Dá uma nostalgia, né?

Tio Odorico, meio afoito, abriu o marcador:

− As coxas da Renata Fronzi!

Meu avô, com a gravidade que o momento exigia do chefe da casa, sugeriu:

− A voz da Ísis de Oliveira.

Alguém, após cuspir um carocinho de limão, perguntou:

− Não vai ter nada da Virgínia Lane? Que que tua acha, Anacleto?

− Sei lá... essa brincadeira... a Heronda... sei lá...

Um grande momento da votação: a bunda. Meu primo Esmeraldo, conhecido pelas domésticas da Penha como Simpatia-é-quase-Amor, pigarreou e lascou:

− Olha, pessoal... Eu não sei se vocês vão achar meio fora de jogada, mas pra bunda eu voto, com todo o respeito, na arrumadeira aqui da casa, a Maria Luísa.

Verdadeira aclamação. O pai do Esmeraldo não se conteve:

− Tô orgulhoso de você, meu filho. Deus é testemunha de que...

Parou a frase no meio, com certeza embaraçado de tomar o Santo Nome num assunto – pra sermos precisos – tão bunda.

E a brincadeira foi em frente. Quando a mulher tava prontinha, com os seios da Isolda (que morava em frente), o umbigo da Isa Rodrigues, tudo certo, o Penteado lembrou:

− Pô, esquecemos do rosto!

Justamente no rosto, o Anacleto, já sem paletó, não aguentou. Era doido pela Eliana*. Dizia mesmo que “era incrível ela topar aquela múmia”, referindo-se ao Renato Murce, que acabava pagando o pato. Depois de um grande gole, falou grosso:

− Deixa comigo, o rosto é comigo!

− Rosto de quem, Anaca?

Era a Heronda, de mãos nas cadeiras, cabelos e pelos já se eriçando, mais leoa do que nunca.

Anacleto matou no peito, suspirou e chutou:

− Rosto... Em matéria de rosto, eu fico com o do Belini.*

E levantando-se, à sombra das goiabeiras em flor, guimba de Astória no canto da boca, fez o convite, olhando pra dentro do copo:

− Senta aqui, nega. A gente tá brincando de viado.

*****

Crônica de Aldir Blanc do livro“Rua dos Artistas e Arredores”.

*Eliana Macedo, atriz das chanchadas da Atlântida, casada com Renato Murce.

*Belini, zagueiro do Vasco e da seleção brasileira campeã mundial de 1958.


Aldir Blanc por Baptistão

Esta crônica, que reproduzo integralmente a seguir foi extraída do delicioso livro “Rua dos Artistas e Arredores” (depois rebatizado de “Rua dos Artistas e transversais”), do grande Aldir Blanc. Após ter sido publicada na edição do Pasquim de nº 341, é uma história que mostra o espírito despojado e sem frescuras do carioca e onde, mesmo que você não conheça o Rio, dá para perceber com toda a clareza a "evolução" em nome do progresso, as mudanças de comportamento (apesar de algumas coisas resistirem bravamente à passagem do tempo) e, o pior de tudo, a transformação sofrida por uma cidade que já foi muito mais maravilhosa do que já é.

Se você conhece o Aldir apenas por sua parceria com, o também brilhante, João Bosco, ou por ser um dos maiores letristas da música popular brasileira, vou pegar leve e só digo que você não sabe o que está perdendo. Mas, na pior das hipóteses, se você nunca ouviu o seu nome, eu lhe pergunto: Em que planeta você vive, cara pálida?


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