Era uma maravilha aquela adaga, de uma lâmina lustrosa, que rebrilhava
no escuro, puro aço de Damasco, retorcido, desdobrado dezenas de vezes,
rebatido em várias camadas, forte e leve. Forjada a fogo e marreta por um
cuteleiro sírio, diziam. Cabo de madrepérola e bainha de prata. Ninguém sabia a
verdade. Era um mito, vivia rodeada de falatórios. Ganhara fama desde que
matara o tropeiro Cizinho Ramos numas carreiras lá no Passo dos Buracos.
Cizinho era afamado pelo uso da faca e do facão. Alguém jurou ver a adaga sair
da mão do Mulato e voar na jugular do Cizinho. Outros afirmaram que o tropeiro
havia bebido muito naquele dia, a partir dali, a adaga se tornou uma lenda.
O Mulato foi condenado a dez anos.
Cumpriu a metade ou nem isso. O comissário havia apreendido a arma, mas de
forma misteriosa apareceu de novo na cintura do Mulato. Este, matou Jango
Calheiros durante um jogo de truco. Jango era procurado pela Polícia, depois de
ter matado a tiros um milico durante um roubo de vacas nas encostas do Jaguari.
Deram a ele salvo-conduto nesse caso. Fez um favor ao governo, afirmaram.
Mulato por muito tempo serviu ao doutor Epaminondas, coronel e dono da região
naquele tempo. Pelos serviços prestados deu a adaga ao Mulato, seu braço
direito. O pai de Epaminondas, o doutor Aparício, era um herói da Guerra do
Paraguai. A adaga teria vindo de lá, das batalhas do Chaco, ninguém sabe como
nem as razões. Coisa de guerra.
Uma vez só vi essa adaga com o
Mulato, que costumava dirigir um jipe, depois que morrera seu cavalo tordilho
meio toso. “Agora chegou o cavalo de aço, à gasolina, pingo mesmo só para
camperear nas invernadas”. E, por maroto que era, completava: “As chinas gostam
mais de ouvir ronco de motor do que relincho de matungo”. Tratava-me com muita
educação, mas pressentia meu receio. “Não tenha medo de mim, sou um homem como
os outros”, disse-me uma vez, enquanto servia-lhe um copo de vinho tinto. Pedia
um copo grande e que botasse duas colheres de açúcar. “De amargo, basta minha
vida”, dizia sorrindo, colorindo os bigodes.
Por ironia do destino, foi um piazote
franzino, que nunca havia brigado em sua curta vida, que deu fim no Mulato.
Enfrentaram-se numa tarde fria de domingo, ao lado de uma cancha de bocha na
venda do Crescêncio, no Rincão dos Bastos. “Não vou sujar minha adaga em ti,
guri de merda”, disse o valentão. O piá acertou um direto no Mulato, que caiu e
bateu a cabeça numa pedra. Com o tombo, a adaga voou outra vez e foi parar no
fundo do rio. Ninguém mais a achou nem foi vista. “Era encantada”, sentenciou o
bolicheiro.
Paulo Mendes, in
“Campereadas”, Correio do Povo
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