sábado, 17 de maio de 2014

Adaga voadora



Era uma maravilha aquela adaga, de uma lâmina lustrosa, que rebrilhava no escuro, puro aço de Damasco, retorcido, desdobrado dezenas de vezes, rebatido em várias camadas, forte e leve. Forjada a fogo e marreta por um cuteleiro sírio, diziam. Cabo de madrepérola e bainha de prata. Ninguém sabia a verdade. Era um mito, vivia rodeada de falatórios. Ganhara fama desde que matara o tropeiro Cizinho Ramos numas carreiras lá no Passo dos Buracos. Cizinho era afamado pelo uso da faca e do facão. Alguém jurou ver a adaga sair da mão do Mulato e voar na jugular do Cizinho. Outros afirmaram que o tropeiro havia bebido muito naquele dia, a partir dali, a adaga se tornou uma lenda.

O Mulato foi condenado a dez anos. Cumpriu a metade ou nem isso. O comissário havia apreendido a arma, mas de forma misteriosa apareceu de novo na cintura do Mulato. Este, matou Jango Calheiros durante um jogo de truco. Jango era procurado pela Polícia, depois de ter matado a tiros um milico durante um roubo de vacas nas encostas do Jaguari. Deram a ele salvo-conduto nesse caso. Fez um favor ao governo, afirmaram. Mulato por muito tempo serviu ao doutor Epaminondas, coronel e dono da região naquele tempo. Pelos serviços prestados deu a adaga ao Mulato, seu braço direito. O pai de Epaminondas, o doutor Aparício, era um herói da Guerra do Paraguai. A adaga teria vindo de lá, das batalhas do Chaco, ninguém sabe como nem as razões. Coisa de guerra.

Uma vez só vi essa adaga com o Mulato, que costumava dirigir um jipe, depois que morrera seu cavalo tordilho meio toso. “Agora chegou o cavalo de aço, à gasolina, pingo mesmo só para camperear nas invernadas”. E, por maroto que era, completava: “As chinas gostam mais de ouvir ronco de motor do que relincho de matungo”. Tratava-me com muita educação, mas pressentia meu receio. “Não tenha medo de mim, sou um homem como os outros”, disse-me uma vez, enquanto servia-lhe um copo de vinho tinto. Pedia um copo grande e que botasse duas colheres de açúcar. “De amargo, basta minha vida”, dizia sorrindo, colorindo os bigodes.

Por ironia do destino, foi um piazote franzino, que nunca havia brigado em sua curta vida, que deu fim no Mulato. Enfrentaram-se numa tarde fria de domingo, ao lado de uma cancha de bocha na venda do Crescêncio, no Rincão dos Bastos. “Não vou sujar minha adaga em ti, guri de merda”, disse o valentão. O piá acertou um direto no Mulato, que caiu e bateu a cabeça numa pedra. Com o tombo, a adaga voou outra vez e foi parar no fundo do rio. Ninguém mais a achou nem foi vista. “Era encantada”, sentenciou o bolicheiro.


Paulo Mendes, in “Campereadas”, Correio do Povo


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