O sacristão da Lampadosa
A falta de documentos destinados
a provar em definitivo ter sido Machado de Assis coroinha ou sacristão da
igreja da Lampadosa, não seria fora de propósito recompor o que há na obra de
nosso maior escritor, como sobrevivência do tempo em que ele andou
“entre-santos”, na atmosfera das coisas eclesiásticas.
Muitas de suas páginas estão a
dizer-nos, indiscutivelmente, que Machado de Assis, no começo da vida, se
impregnou dessa atmosfera, a ponto de poder literariamente recriá-la em tom
evocativo.
O conto “Entre Santos”, das Várias Histórias, chega a valer por
testemunho. Bem assim certos lances do Dom Casmurro. E o conto da “Missa do
Galo”. E, sobretudo, algumas das mais belas crônicas machadianas, como aquela
em que fala do cantochão da igreja do Carmo, para nos dizer, numa onde de
saudade: “Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas igrejas.”
A Francisco de Castro, grande amigo
de Machado de Assis, não escapou o reparo dessa impregnação na obra do mestre.
E, um dia, confiado na cordialidade que os unia como bons companheiros,
perguntou ao escritor se, de fato, como já lhe tinham falado, ele havia sido
sacristão na igreja da Lampadosa.
– Fui, sim – replicou o
romancista.
E fechando-se na sua reserva
habitual:
– Mas não repita isso a
ninguém.
O amigo do Machadinho
Achava-se Machado de Assis em seu
gabinete de trabalho, na Diretoria de Contabilidade do Ministério da Viação,
quando o contínuo anunciou a presença de uma pessoa que desejava falar-lhe.
– Diga-lhe que no momento
estou muito ocupado e que não posso recebê-la – ordenou o romancista.
Mas nesse momento a porta do gabinete
era aberta pelo visitante, que logo se adiantou, rosto aberto e risonho, modos
espalhados, o vozeirão cordial:
– Com licença, Machadinho.
E aproximando-se:
– Não se lembra de mim,
Machadinho? Fui seu velho camarada, nos bons tempos em que você era sacristão
da Lampadosa!
Machado de Assis, ar sombrio,
retraiu-se ao abraço festivo que tentava envolvê-lo, ao passo que o outro,
sempre a tratá-lo de Machadinho, prosseguiu no seu tom derramado.
Por fim, vendo-se livre do importuno,
o romancista volveu à mesa de trabalho, ainda com expressão de aborrecimento e
enfado. E baixando a cabeça, enquanto molhava a pena para tornar ao processo
que ia informando, resmungou, irritado:
– Machadinho...
Machadinho... Machadinho vá ele!
O parecer do postulante
Encontrava-se Machado no seu gabinete
de trabalho na Secretaria da Indústria, quando ali chegou uma pessoa que lhe
queria falar com muito empenho. O escritor atendeu-a, sem demora.
Tratava-se de outro interessado na solução de um processo. Machado de Assis,
após exame do assunto, declarou ao postulante que era inteiramente contrário ao
que este pretendia.
– Reflita bem, Senhor
Diretor – volveu o noutro, disposto a mudar o parecer de Machado de Assis.
E animado pelo silêncio do escritor,
pôs-se a discorrer sobre o processo, alinhando razões e argumentos, com uma
fluência de advogado.
A certa altura da explanação, Machado
de Assis levantou-se da mesa e ofereceu-lhe a própria cadeira:
‒ Faça o favor, sente-se.
O homem sentou-se, intimamente
convencido de que a cortesia do Diretor era meio caminho andado na modificação
de seu juízo contrário ao caso. E ainda bem não se havia refestelado na
cadeira, quando Machado de Assis, depois de molhar a pena no tinteiro, lhe
ofereceu a caneta:
– Tenha bondade, Senhor
Diretor, de lavrar o seu parecer.
O postulante, enfiado, ergueu-se da
cadeira, compreendendo a ironia do escritor, e saiu dali apressadamente, sabendo
que não devia voltar...
A mágoa de não ter filhos
Machado de Assis, no final das Memórias Póstumas de Brás Cubas,
procurou consolar-se da mágoa de não ter tido filhos dizendo, pela pena de seu
herói, que assim não passaria a outrem o legado da nossa miséria.
A verdade é que, não obstante a
consolação dessas palavras, a mágoa permaneceu no espírito do romancista.
Estava ele, um dia, em companhia de
José Veríssimo, quando ouviu de um amigo a participação do nascimento de seu
nono filho.
– Nove – comentou Machado
de Assis – é talvez demais.
E depois de uma pausa, com os olhos
entrefechados:
‒ Porém nenhum é pior.
A impressionabilidade do escritor
Em companhia de Magalhães de Azeredo,
entrou Machado de Assis numa farmácia.
E o farmacêutico:
‒ Há poucos momentos tive
de socorrer uma pessoa que caiu com um ataque epilético.* O senhor não avalia
como ainda estou me sentindo mal com a lembrança do corpo a contorcer-se na
calçada, sem sentidos, a boca espumando.
E Machado de Assis, nervosíssimo:
– Por favor, cale-se, que
eu também sou doente e estou sentindo que vou ter alguma coisa!
* Machado de Assis também era epilético.
Gosto literário
O Visconde de Taunay, sentado a um canto de
redação da Revista Brasileira, lia interessadamente um livro, quando Machado de
Assis, que acabara de chegar, se adiantou para cumprimentá-lo.
– Que está lendo? –
perguntou ao mestre de Inocência o
mestre das Memórias Póstumas, depois
que lhe apertou a mão.
Taunay mostrou-lhe o livro.
E notando uma sombra de restrição no
semblante do amigo:
– Não gosta? –
perguntou-lhe.
– Não.
– Por quê?
E Machado de Assis:
– Não gosto de escritor que
me diz tudo.
A reação do romancista
Raramente saindo de casa à noite, a
não ser em companhia de Carolina, Machado de Assis, obrigado por um
compromisso, teve de jantar, um dia, num dos restaurantes do centro da Cidade.
E ia-se servindo da sopa, que o
garçom acabara de trazer-lhe, quando notou que, à tona da gordura, boiava um
fio de cabelo louro.
– Ouça aqui – chamou o
romancista.
E assim que o garçom voltou:
– Olhe – disse ele,
mostrando o prato – eu gosto de cabelo louro e de sopa, mas separado.
A última recusa
A vida de Machado de Assis era já
uma tênue chama que o mais leve sopro podia apagar. Em seu redor, os velhos
amigos. Lá fora, o sussurro de vozes pesarosas. Nenhuma esperança de saúde para
o velho escritor.
E um dos amigos, sentindo que se
aproximava a hora final, propôs ao mestre, numa pergunta piedosa:
A vida de Machado de Assis era já
uma tênue chama que o mais leve sopro podia apagar. Em seu redor, os velhos
amigos. Lá fora, o sussurro de vozes pesarosas. Nenhuma esperança de saúde para
o velho escritor.
‒ Posso mandar chamar um sacerdote?
Machado moveu a cabeça numa negativa.
E com uma voz distante, já quase extinta, marcando a coerência do homem com o
seu pensamento:
‒ Não quero... Não creio...
Seria uma hipocrisia...
Do livro “Pequeno Anedotário da Academia Brasileira”,
de Josué Montello.
de Josué Montello.
“A vida é boa!”
(Últimas palavras,
sussurradas por Machado de Assis, patrono dos escritores brasileiros, em 29.09.1908, ao
crítico José Veríssimo, que acompanhou sua agonia final).
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