quinta-feira, 8 de maio de 2014

Causos de desavenças



Caboclo quando dá pra ficar de mal com alguma pessoa, é bom a gente sair de perto. Ô raça pra ficar enjirizada à toa, à toa. Eu até me lembro de um cumpadi lá da minha terra que ficou sem falar com outro cumpadi lá dele mais ou menos uns 20 anos. Pois não é que de repente o outro cai doente, médico na cabecêra da cama e outros babados, aquela preocupação da família com a gravidade da doença... E não é que o outro cumpadi, o tal que guardou tanta raiva por tanto tempo, teve num relance a coragem de visitar o dito cujo.

Pois não é também que, depois de sair do quarto do enfermo, chamou o médico de plantão, do lado de fora pra falar baixinho no seu ouvido, assim: “Ô, doutor? Haverá perigo dele escapar?”

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Pois um caboclo casado brigou com dois irmãos da mulher lá dele. Dois cunhados. E vai daqui, vai dali, já fazia bem uns 5 anos de rusga. Dizia ele que não podia nem olhar pra cara de um deles. Um se chamava João e o outro era Antonho.

Eis que, um belo dia, o tal cumpadi rancoroso cai de cama e fica vão não vai. Morre não morre. Pra surpresa da mulher lá dele, de repente o dito cujo pede pra esposa ir correndo chamar os dois desafetos. Os irmãos dela. O João e o Antonho.

A mulher vibra radiante, embora o momento fosse de dor, pois o marido tava desenganado e ela achou que, com esse pedido, o mesmo quisesse perdoar os seus dois irmãos e, assim, partir em paz pra última morada. Tenho que lembrar que essas desavenças na família eram o maior desgosto da comadre.

Bom. Diante desse pedido do moribundo, a esposa saiu correndo e foi bater à porta da casa onde moravam os seus irmãos, João e Antonho. E ela pede entre lágrimas: “João! Antonho! O Zé qué cunversá cum vancês antes de embarcá. Vamu lá em casa, pelo amor de Deus. Vamu fazê esse úrtimo pedido do meu marido. Ele qué perdoá ocêis pru causa dessa desavença antiga. Vamu lá! “

Os dois irmãos, meio a contragosto – pois também tinham aquele rancor guardado nos peitos -, diante de tanta insistência da irmã chorosa e preste a ficar viúva, resolvem atender ao pedido de quem já estava mais pra lá do que pra cá.

A cena seguinte, que foi a cena do reencontro, se deu no quarto do moribundo, e foi assim:

Moribundo - João? Chega pra cá. Vem aqui do meu lado esquerdo. Bem pertinho de mim. Antonho? Ocê tomêm. Chega pra cá pro meu outro lado da cama. Bem pertinho de mim tomêm.

João e Antonho se aproximam, um de um lado da cama e o outro do outro lado.

Moribundo (quando os dois estão colocados) - Eu quero morrê quiném Jesus: Um ladrão de cada lado.

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(Do livro “Contando Causos”, de Rolando Boldrin)


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