Não consigo esquecer
Por David Coimbra*
Por David Coimbra*
Vi uma menina em meio aos cadáveres,
no ginásio de Santa Maria.
Não consigo esquecer aquela
menina.
Eu estava caminhando
pelos corredores de corpos das vítimas do incêndio na boate, estava angustiado
com o cenário de horror. Na verdade, não sabia exatamente o que pensar nem o
que sentir, e ainda estou pensando, ainda estou sentindo.
Então, avancei pelo
corredor central, até onde haviam sido dispostas as mulheres, todas elas cobertas
até a cintura por uma lona.
E a vi.
Ela estava deitada à
direita do corredor principal, numa das fileiras frontais. Era uma moreninha de
cabelos pretos e lisos que lhe escorriam até um palmo abaixo dos ombros. O que
primeiro me chamou a atenção foram, exatamente, os cabelos. Pareciam estar
penteados. Tinham brilho. Em seguida, olhei bem para seu rosto. Era bonita, de
feições delicadas, boca e nariz pequenos. Os olhos escuros estavam semiabertos,
como se ainda enxergassem ou estivessem se abrindo de um sono reparador. Era
muito jovem. Quantos anos teria? Dezoito? Dezenove no máximo.
Eu ia para um lado e
para outro, mas acabava voltando e olhando-a. Por algum motivo, precisava
olhá-la. Pensei que parecia uma menina bem cuidada. Sim, uma menina tratada com
doçura, como têm de ser tratadas as meninas. Devia ser o orgulho dos pais, a
paixão dos avós. Provavelmente estudava nos semestres iniciais de alguma das
faculdades de Santa Maria. Talvez Veterinária. Sim, aposto que era Veterinária,
a menina devia adorar bichos.
Devia ser uma menina
alegre, que iluminava os locais em que chegava. Devia estar no primeiro
namorado, nos primeiros beijos, nas primeiras dores de amor. Espantoso como
dela emanava serenidade. A impressão era de que logo se ergueria dali,
sorridente e estremunhada do adormecer, e olharia para mim, e me cumprimentaria
com leveza, e sairia daquele lugar macabro com passos de quem já foi bailarina.
Lembrei de uma história
contada no Evangelho de São Marcos. Jesus chega ao velório de uma menina. Todos
choram, e ele diz:
-
Por que estão chorando? Ela não está morta, está apenas dormindo.
As pessoas caçoam de Jesus, mas ele se
aproxima do corpo e ordena:-
Talita, cumi!
Ou seja:-
Menina, levanta!
E a menina se levantou para a vida.
Pensei que aquela menina
de Santa Maria poderia se levantar para a vida naquele momento. Porque ela
parecia, mesmo, viva. Tão bela, tão criança, tanto para fazer neste mundo. E aí
olhei para ela e pensei: menina, levanta! E, por um momento, acreditei que ela
pudesse, de fato, se levantar. Olhei, olhei, mas ela não se mexia. Como podia,
aquela menina ali? Não podia. Não devia. E de novo pedi: menina, levanta! E a
fitei, fixamente. Levanta, menina, pedi outra vez. Levanta. Levanta. Levanta.
Levanta.
*****
Eu, Nilo da Silva Moraes, dou o seguinte testemunho:
* No dia 29 de janeiro de 2013, numa
terça-feira, viajei com a minha mulher para o Rio de Janeiro. O voo seria pelas
8 horas da manhã. Fui numa banca e comprei o jornal Zero Hora para ler na
viagem. Ainda estava impactado pela tragédia da minha cidade, Santa Maria. Li a
crônica acima, fiquei emocionado. À tarde, no Rio, vou à Biblioteca Nacional
para fazer uma pesquisa. Na saída, na portaria, acertando uns detalhes com as
funcionárias da biblioteca, vi um jovem perguntar algo, reconheci-o e disse; “Muito boa a tua
crônica, David Coimbra.” Ele deu-me um sorriso simpático e agradeceu o
comentário. As moças, curiosas, quiseram saber do que se tratava. Pedi que
abrissem o PC que estava na sua frente e digitassem: Zero Hora – David Coimbra.
Elas, então, leram a crônica acima, e entenderam a dimensão da nossa dor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário