Foto dos atores de
uma peça teatral sobre os crimes.
Na verdade, José
Ramos não era o linguiceiro e, sim, o mentor dos crimes.
Você já ouviu falar no caso do
linguiceiro da Rua do Arvoredo?* É uma história antiga, que sobreviveu por anos
a fio pela tradição oral e por muito tempo, acreditou-se que se tratava apenas
de uma lenda urbana. A história oficial em vão buscou abafar a história, mas a
verdade é que a cidade entrou para a galeria dos crimes mais hediondos por
causa de um homem, talvez o maior facínora de seu tempo.
Tudo começou em 1863, na provinciana
Porto Alegre dos tempos do Segundo Império. Naquele tempo, a capital era a
quarta maior do Brasil, com cerca de 20 mil habitantes, 4 mil casas, 18
edifícios públicos e sete igrejas. Foi na cidadela que se encastelava na
península central de ruas sem calçamento e cheia de tocas de tatu de escravos
fugidos que nasceu o mito de José Ramos e o insuspeito açougueiro (seu
cúmplice) que fazia linguiça de restos humanos. Ramos era considerado como um
discreto gentil-homem, elegante e viajado, como se saísse das páginas de um
romance de Alexandre Herculano. Era visto em casas de ópera da cidade e consta
que tinha excelente gosto musical. Na verdade, ele foi uma espécie de inspetor
de polícia (mais tarde informante) que foi obrigado a fugir de Santa Catarina
após matar o próprio pai (parricídio).
As primeiras vítimas -
sempre gente de fora - eram fisgadas por Catarina no Beco da Ópera (hoje a Rua
Uruguai, no coração de Porto Alegre). Atraídos pelos dotes físicos (?) da
mulher, eles iam para o cadafalso por um trajeto obscuro de ladeiras, do velho
Beco do Poço até a Rua da Igreja (hoje Duque de Caxias), até a casa dele - um
sobrado que ficava atrás da antiga Matriz, na Rua do Arvoredo, hoje Fernando
Machado. Ali ocorreu o primeiro latrocínio, segundo registros da época. Pior que
isso, nos fundos da Igreja da Matriz (onde hoje resiste bravamente a Catedral)
ficava o cemitério da cidade. Como a chuva amiúde lavava o terreno, não era
raro encontrar fêmures e caveiras rolando sorridentes pela Rua do Arvoredo.
Como ninguém queria alugar aquela casa, Ramos e Catarina se mudaram para lá,
transformando aquele pardieiro refugado pela sociedade no seu ninho de amor e
lascívia. Era ali, naquele ambiente íntimo, que eles matavam as suas vítimas,
com requintes de crueldade... Com técnica refinada, cada corpo era degolado,
esquartejado, descarnado e cortado com capricho e em fatia, para serem
acondicionados em baús.
Para o trabalho, o açougueiro contava com a ajuda de Carlos
Claussner — que pouco tempo depois seria assassinado pelo comparsa. Com o
moedor, ele fazia guisado da carne e preparava o produto, oferecido para toda a
cidade em seu açougue da Rua da Ponte (hoje Riachuelo, fundos da Igreja Nossa
Senhora das Dores).
Consta que a linguiça de Claussner
era muito apreciada. Desbaratado o caso em 1864, Ramos foi condenado à forca e Cataria morreu louca num hospício.* A
despeito de todo o escândalo, os crimes da Rua do Arvoredo foram
propositalmente ignorados pela imprensa de época. Em sua pesquisa, porém, Décio
Freitas constatou que a história repercutiu em jornais da França e do Uruguai!
José Ramos ganhou a fama do terror de Porto Alegre, no século XIX. Décio
Freitas faz nesse livro uma pesquisa histórica sobre a realidade do episódio,
apesar de conter muitas lacunas, uma vez que dos três processos realmente
movidos, dois desapareceram e claramente se vê desejo de abafar o caso, pelo
inquérito transcrito que, em nenhum momento menciona o fato das vítimas serem
transformadas em linguiças, mesmo quando Catarina afirma isso categoricamente.
Verdades sobre o fato:
* Atual Rua Fernando Machado
* Havia um indivíduo
(Karl Claussner), na cidade, amigo de José Ramos, que, por ser linguiceiro,
descartava carcaças de animais e sabia dos crimes e, por isso, foi assassinado
por José.
* Na verdade, José Ramos não foi
condenado à forca, mas, sim, à prisão perpétua. Cumpria pena no Presídio
Central, quando, doente, foi transferido para a Santa Casa onde acabou
falecendo, em 1893, cego e leproso.
Textos do livro “O Maior Crime da
Terra – O Açougue Humano da Rua do Arvoredo”, de Décio Freitas, Editora Sulina
– 1996*
* Exemplar autografado pelo autor na Feira do Livro de 1996
Rua do Arvoredo-1860
(Atual Rua Fernando Machado)
Sete horas e trinta da manhã de 1° de
agosto de 1893, na Santa Casa de Misericórdia, hospital para pobres na cidade
de Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre. Num catre imundo, um homem
agoniza. Seu rosto, quase inteiramente comido pelo “mal-de-lázaro”, causa
repugnância. Quando o padre lhe dá a extrema-unção, nada vê porque está
completamente cego. Suas últimas palavras:
– Deus
me fará justiça!
Em junho de 1877, cumprida a sua
pena, Catarina é posta em liberdade, quando já completou 41 anos de idade. No
ano de 1891, Catarina morre e é enterrada como indigentes no cemitério da Santa
Casa.
A confissão de Catarina Palse
Na confissão de Catarina, não há
referência à sua condição de mucker. No mais, o que ela dirá ao chefe de
Polícia coincide, mais ou menos, com o que consta da confissão escrita, salvo
algumas diferenças menores.
Explica
Catarina sua decisão de confessar tudo:
– Tenho vivido na
abominação do pecado e do crime. Meu corpo está perdido, mas minha alma ainda
pode ser salva.
Conta que tudo começou quando foram
viver na casa da Rua do Arvoredo:
– Uma noite, Ramos me disse
que nada queria esconder de mim. O destino quisera que ele matasse e se
apossasse dos haveres de suas vítimas. Teria que matar muitas pessoas. Os
mortos não precisavam de dinheiro ou riqueza, enquanto que nós dois tínhamos
direito a isso devido aos nossos sofrimentos. Explicou que até então matara
porque tinha medo da forca, mas agora já não tinha medo, graças a Claussner.
– Qual era a amizade entre
os dois? – pergunta Campello (chefe de Polícia).
– Fizeram-se amigos desde
que Claussner se estabeleceu com açougue na Rua da Ponte. Quase todas as
noites, Ramos ia visitá-lo no açougue, onde ficavam juntos por muito tempo. Às
vezes brigavam e nessas ocasiões, Ramos voltava arreliado para casa. Volta e
meia, Ramos surrava Claussner. Quando isso acontecia, ficava muito triste e até
chorava, repetindo quer não podia viver sem a amizade de Claussner. Certa
noite, voltou muito alegre, dizendo que Claussner descobrira uma maneira de
impedir que os assassinatos viessem a ser provados.
– Que maneira era essa?
– As vítimas seriam esquartejadas e sua carne usada por
Claussner para fabricar linguiça. Os cadáveres assim desapareceriam e nunca se
poderia provar nada.
– Esses planos sinistros
não a horrorizaram?
– Tudo o que eu queria era
que ele fosse feliz. Nunca conheci pessoa tão feliz como ele depois que matava.
Eu achava que ninguém tinha o direito de lha arrebatar essa felicidade.
Resumo dos fatos
Os crimes da Rua do Arvoredo
Em 18 de abril de 1864, a polícia
de Porto Alegre deparou-se com uma cena de crime horripilante: no porão da casa
de José Ramos e Catharina Palse, na Rua do Arvoredo, estavam enterrados os
pedaços de um corpo humano, já em avançado estado de decomposição. O cadáver
havia sido retalhado, com a cabeça e membros separados do tronco, e este, por
sua vez, repartido em vários pedaços. A vítima foi identificada: era o alemão Karl (Carlos) Claussner, dono de um açougue na Rua da Ponte. Ao examinar um poço
desativado, no terreno dos fundos da casa, a polícia encontrou os corpos do
taverneiro Januário Martins Ramos da Silva e de seu caixeiro, José Ignácio de
Souza Ávila, de apenas 14 anos, igualmente esquartejados. As buscas no poço
prosseguiram, tendo a polícia encontrado ainda o cadáver de um cachorrinho
preto, rasgado da garganta ao ventre. A motivação dos crimes era evidente:
Ramos e Palse mataram para se apossar dos bens de suas vítimas, com exceção do
caixeiro e do cãozinho, que foram mortos como queima de arquivo. Os crimes
causaram repugnância, especialmente depois que uma série de boatos davam conta
de que o casal assassino fazia linguiça com a carne das vitimas e vendia o
produto num movimentado açougue de Porto Alegre. A polêmica sobre a veracidade
da linguiça de carne humana* até hoje divide os gaúchos.
*Os corpos de Karl, Januário e José Ignácio foram encontrados putrefatos, indicando que não foram aproveitados para fazer linguiça, mas a lenda do fato continua até hoje...
Nenhum comentário:
Postar um comentário