Ora bolas! O humor cotidiano de Mário Quintana
* Ora bolas! Era a expressão
muito usada pelo poeta em qualquer situação, depois de dar sua opinião sobre
qualquer fato.
Mário Quintana por Santiago
Imposto de renda
Andava o
poeta às voltas com a declaração do imposto de renda.
Tinha o salário do Correio
do Povo e até aí tudo bem. Para complicar, havia Direitos autorais vindos de várias fontes. Mais burocracia
do que dinheiro, como se sabe. Enfim, andavas às voltas com os labirintos da
declaração.
Mas sempre há uma alma caridosa. O
colega Sílvio Braga, que se dividia entre a redação do Correio e uma repartição federal, ofereceu-se.
– Reúne a papelada e me
passa, que eu faço tua declaração no computador.
Prometido e feito. Mário agradeceu aos
préstimos com os versos abaixo:
Sei que meu cálculo é infiel,
Na mais inglória das lutas,
Lido com pena e papel
E tu, ó Braga, computas.
Mesa de mármore
Vetado três vezes pelos acadêmicos da
ABL, que sempre acham lugar para um José Ribamar Sarney, um general Lira
Tavares ou um Roberto Marinho, Mário confessou depois que tivera uma vaidade
passageira com essa candidatura, que, aliás, não fora uma ideia dele. Comentou
poeticamente com as jornalistas Jussara Porto e Teresa Cardoso, de Zero Hora, que foram conversar com ele.
– Nunca fui falante, nunca
fui de badalações. Eu tenho inveja de mim mesmo, do tempo em que escrevia
anonimamente nos mármores dos cafés. Os garçons reclamavam: “Esse aí passa a
noite inteira bebendo cachaça e sujando o mármore das mesas”. Agora deixei de
beber e as mesas não são de mármore.
Dentes
Três dias antes de morrer, no
Hospital Moinhos de Vento, ele encontrou inspiração para escrever uma frase e
dá-la de presente às enfermeiras. Ao contrário da letra grande e quase ilegível
dos últimos meses, mesmo tremida desta vez ela está miúda e nítida: “A maior dor do mundo é pente com dor de dentes”.
Palavrão
Em outra visita a São Paulo, ele é levado
a conhecer uma livraria muito especial, repleta de obras raras e dirigida por
uma senhora culta e elegante. Vaidosa e envaidecida, ela recebe o poeta gaúcho
entre elogios e rapapés. Faz sua
propaganda.
– Meu
caro poeta, temos aqui incunábulos legítimos, à sua disposição!
Quintana:
– Meu
Deus, uma senhora tão distinta fazendo essa proposta tão estranha...
(Ok, ninguém precisa ir ao
dicionário. “Incunábulos” são as obras impressas nos primeiros tempos, logo
após a invenção da imprensa).
À Cleusa, mulher de outro amigo,
Armindo Trevisan resolveu batizar de Cleúsa. Era Cleúsa pra cá, Cleúsa pra lá.
– Eu
não sou Cleúsa – resolveu ela reagir um dia.
Mário olhou
para Armindo:
– Se é
Cleúsa é tua musa, se é Cleusa é tua deusa...
Questão relevante
Morou lá durante 12 anos, e o Hotel
Majestic iria fechar as portas. Além de todo o folclore, da tradição, o mais
ilustre cliente, etcétera e tal, nem por isso se vá pensar que ele era homem de
apegar-se doentiamente ao passado ou de lutar contra o irremediável. Mas o
fechamento do hotel, e seu “desamparo”, eram um prato cheio.
No dia em que desocupou o quarto, a
imprensa estava toda lá. Bem orientada para dramatizar a situação, a jovem
repórter da TV Gaúcha, hoje RBS TV, cumpriu a pauta:
– E
agora, o que o senhor vai fazer?
E ele, com
aquela típica cara de espanto, sem olhar para ela:
– Realmente, minha filha, trata-se de um grave problema nacional.
Quem é?
Lançada no Brasil pela TV Globo,
estava na moda aquela história do repórter encostar o microfone na boca do
entrevistado e perguntar: “Quem é o Fulano de Tal?”. E o Fulano respondia: “Sou
um ator, um homem do povo, que compra em supermercado, entra em ônibus,
acredito no mundo novo, patati, patatá” Deu pra lembrar? A repórter da TV
Gaúcha precisava estar na onda e foi de primeira:
– Quem é Mário Quintana?
Surpreso, quase incrédulo diante da
pergunta, ele só achou uma saída:
– Sou eu, minha filha.
Arrependimento
O poeta, ensaísta e professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Donaldo Schüller foi à redação do Correio do Povo agradecer uma citação a
respeito dele, feita num dos “Caderno H”. Quintana:
– Sabe? Já que vieste me agradecer, acho que até já me arrependi...
Dívida
Como fechamento do velho Correião, em 1984, ele passou a publicar
o “Caderno H” na Istoé. O
correspondente da revista no Rio Grande do Sul, Carlos Urbim, dublê de
jornalista e escritor de livros infantis, como O Guri Daltônico, foi um dia ouvir a opinião de Mário para uma
reportagem.
Na hora combinada com Elena,
administradora da agenda, Urbim chegou ao Porto Alegre Residence acompanhado da
fotógrafa Eneida Serrano. Apresentou-se:
– Somos colegas das Istoé.
Ao saber disso, Quintana fechou-se:
– Da Istoé? Para a Istoé eu
não falo! Estão me devendo e não me pagam!
Esquina perigosa
Depois do almoço, Mário Quintana e
jornalista J. Prado Magalhães, da Folha
da Tarde, fazem a digestão caminhando pela Rua da Praia. Ao chegarem à Rua
da Ladeira, que até hoje ninguém entende por que foi rebatizada de General
Câmara, Mário tem sua atenção despertada por uma nova placa de trânsito
colocada ali: “Esquina perigosa”. Num tom irônico, quase distante, observa:
– Veja só. Como se a
esquina pudesse ser perigosa. Perigosos são os motoristas, ora bolas!
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