segunda-feira, 5 de maio de 2014

Paulo Leminski

 (1944 – 1989)


Paulo Leminski por J Bosco


Razão de ser



Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
Preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas
Tem que tem por quê?


01
 
lembrem de mim
como de um 
que ouvia a chuva 
como quem assiste missa 
como quem hesita, mestiça, 
entre a pressa e a preguiça 
 
02
 
já me matei faz muito tempo 
me matei quando o tempo era escasso 
e o que havia entre o tempo e o espaço 
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo 
morrer faz bem à vista e ao baço 
melhora o ritmo do pulso 
e clareia a alma morrer de vez em quando 
é a única coisa que me acalma 
 
 
03
 
um homem com uma dor 
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado 
andasse mais adiante
carrega o peso da dor 
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares 
ou coisa que os valha
ópios edens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra 
 
04 e 05
 
LÁPIDE 1
 
epitáfio para o corpo 
Aqui jaz um grande poeta. 
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito 
são suas obras completas.
 
LÁPIDE 2
 
epitáfio para a alma
aqui jaz um artista
mestre em disfarces
viver 
com a intensidade da arte 
levou-o ao enfarte 
deus tenha pena 
dos seus disfarces 
 
06
 
AÇO E FLOR
 
Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera 
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne, 
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai 
no fio da lâmina samurai, 
esse, nunca vai ser capaz. 
 

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