Metade de mim
Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que
anseio.
Que a morte de tudo o que
acredito
não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu
grito,
mas a outra metade é silêncio...
Que a música que eu ouço ao
longe,
seja linda, ainda que triste...
Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de
sentimentos.
Porque metade de mim é o que
ouço,
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir
embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.
E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu
penso,
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu
rosto,
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na
infância.
Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.
Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.
Porque metade de mim
é abrigo, mas a outra metade é
cansaço.
Que a arte nos aponte uma
resposta,
mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja
perdoada.
Porque metade de mim é amor,
e a outra metade...
também.
“Quando surge uma ideia, vou para a rua.
Tenho prazer em conceber o poema no meio
das pessoas que passam e nem suspeitam
que ali, naquela hora ele está nascendo.”
“Quando o poema chega, é um
acontecimento inusitado, uma erupção,
como um vulcão. Está tudo bem e de
repente ele começa a colocar fogo pela boca.”
“Posso fazer dez poemas por dia,
porque eu sei fazer.
Mas nunca farei isso.
Eu sempre fui assim,
sempre escrevi o poema necessário.”
“A poesia não fala de tudo.
Existe uma parte da vida sobre a qual a poesia não fala,
mas eu também sou essas outras coisas.”
(Publicadas na
revista Cult, nº 3 em outubro de 1997)
Ferreira Gullar: 10.09.1930 - 05.12.2016
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