“Por seis julgamentos passou
Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum deles teve um
juiz”.
“Aos olhos dos seus
julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou
estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais que baste para abrigar o
direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados”.
“Grande era, entretanto,
nas tradições hebraicas, a noção da divindade do papel da magistratura. Ensinavam
elas que uma sentença contrária à verdade afastava do seio de Israel a presença
do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas por uma
hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era na função de
julgar que tinha a sua habitação entre os israelitas a majestade divina.
Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando homens lhes perde o
sentimento”.
“No julgamento instituído
contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de
quinta-feira, tudo se fez até ao primeiro alvorecer da sexta-feira subsequente,
foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos hebraicos. A
terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de
formação judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência
de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo
que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma jurídico,
tão facilmente violado pelos despotismos que faz da santidade das formas a
garantia essencial da santidade do Direito”.
“Sem autoridade judicial o
interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira
de inquirir...”.
“A ilegalidade do julgamento
noturno, que o Direito Judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se
então como o escândalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo próprio juiz,
que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o
primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem, lhe
não acharam culpa, que buscavam”.
“Repontava a manhã, quando a
sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar.
Reunira-se o conselho inteiro. In universo concílio, diz Marcos. Deste modo se
dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dias se
observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia judicial,
o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juízes
legais. Mas juízes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam
representar senão uma infame hipocrisia de justiça. Estavam mancomunados, para
condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje,
desses tribunais, que se conchavam de véspera nas trevas, para simular mais
tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento”.
“O escravo de César (Pilatos),
apavorado, cedeu (a pressão dos acusadores), lavando as mãos em presença do
povo: ‘Sou inocente do sangue deste justo’. E entregou-o aos crucificadores. Eis
como procede a Justiça que se não compromete. A história premiou dignamente
esse modelo da suprema cobardia da Justiça. Foi justamente sobre a cabeça do
pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do justo”.
“De Anás a Herodes o
julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da Justiça, corrompida
pelas facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua
inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a
crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um
tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica”.
“De cada vez que há precisão
de sacrificar um amigo do Direito, um advogado de verdade, um protetor dos
indefesos, um apóstolo das ideias generosas, um confessor da lei, um educador
do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as
transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos acreditam, como
Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do atentado,
que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal,
subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado,
interesse supremo, como te chamas, prevaricação jurídica, não escaparás ao
ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.
...ainda que houvesse um árbitro seria muito difícil absolver o réu inocente, eis que estava presente e infiltrado um corporativismo tão cruel somado a uma maquinação e conspiração ricas em hipocrisia e inveja. Um inocente não escapa nunca de um ardil dessa natureza. Deus seja louvado!!
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