quarta-feira, 23 de julho de 2014

A história de um clássico da MPB

          

Lupi e Alcides Gonçalves

Em 1948, Alcides Gonçalves era o pianista titular da boate Marabá, famoso ponto de encontro do bas fond porto-alegrense na rua Siqueira Campos, em Porto Alegre Certa noite, o parceiro subia a escada interna da casa quando Lupicínio Rodrigues notou o semblante inquieto do músico, de olho em um pequeno espelho colocado estrategicamente sobre a tampa do piano para fiscalizar o assédio dos fregueses à dançarina Maria Helena, cacho do Pardo Velho (Alcides Gonçalves) na época. Lupicínio puxou conversa com o protagonista, inteirou-se da situação e pronto; horas depois reapareceu com uns papéis rabiscados com a inspiradíssima letra sobre aquele melodrama boêmio. Alcides se encantou de imediato com o material e acabou musicando o samba canção “Quem há de dizer”.

Gravado em 25 de maio de 1948 e lançado em julho, com toda a carga sentimental pelo amigo em comum Francisco Alves e Orquestra Odeon regida pelo amestro Lyrio Panicalli, o 78rpm Quem há dizer alcançou o 74º lugar no ranking radiofônico de 1948, um êxito “batatal”, tendo no lado B o Fox Maria lá-ô, de Ernesto Lecuona com versão de Haroldo Barbosa. Em seu livro Roteiro de boêmio, Demóstenes Gonzáles afirma que a composição foi apresentada ao Rei da Voz no Café Nice do Rio de Janeiro, pelo próprio baixinho da Ilhota (Lupicínio), durante a curta fase em que morou no bairro da Lapa. Reza a lenda que, na ocasião, Chico Alves estava acompanhado de Ary Barroso, Orlando Silva, Nássara, Benedito Lacerda, Haroldo Lobo, Humberto Porto e Ari Frazão (coautor dos sambas Eu não perdoei e Por amor ao meu amor, gravados por Alcides Gonçalves quase dez anos antes).

Quem há de dizer
que quem vocês estão vendo
naquela mesa bebendo
é o meu querido amor.
Reparem bem que toda vez
que ela fala,
ilumina mais a sala
do que a luz do refletor.

O cabaré se inflama
quando ela dança,
e com a mesma esperança
todos lhe põe o olhar.
E eu, o dono,
Aqui no meu abandono,
espero louco de sono,
o cabaré terminar.

“Rapaz! Leva essa mulher contigo”,
disse uma vez um amigo,
quando nos viu conversar.
“Vocês se amam,
e o amor deve ser sagrado,
o resto deixa de lado,
vai construir o teu lar”.

Palavra! Quase aceitei o conselho.
O mundo, este grande espelho,
que me fez pensar assim.
Ela nasceu com o destino da lua,
pra todos que andam na rua,
não vai viver só pra mim...

(Do livro Minha Seresta – Vida e Obra de Alcides Gonçalves,
de Marcello Campos)


Aqui no meu abandono

Ele foi, em 1936, o primeiro cantor a gravar em disco as composições de Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974). Era um 78 rpm da RCA Victor: em um lado, tinha Triste História, e no outro, Pergunte aos Meus Tamancos – as duas músicas feitas por eles em parceria.

Alcides Gonçalves foi parceiro de Lupi também em outros grandes sucessos, como Maria Rosa, Castigo, Quem Há de Dizer, Jardim da Saudade e Cadeira Vazia. Esta última, inclusive, foi motivo de um rompimento temporário na amizade e na parceria. Alcides não perdoou – e imputou responsabilidade ao parceiro – quando a Odeon gravou a música em 1950, na voz de Francisco Alves, omitindo seu nome no selo do disco.

Mas não foi só com Lupicínio que Alcides fez música. Depois de fazer sucesso nas rádios locais, ele repetiu a dose na Rádio Nacional. Lá, ele conheceu (e compôs com) Ataulfo Alves e Waldir Azevedo.

O livro Minha Seresta – Vida e Obra de Alcides Gonçalves (1908-1987), de Marcello Campos, que está sendo lançado pela Editora da Cidade/Secretaria Municipal da Cultura, resgata, com justiça, essa grande e pouco enaltecida figura da nossa música.



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