terça-feira, 26 de agosto de 2014

Anúncio de João Alves



Carlos Drummond de Andrade

Figura o anúncio no jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

À procura de uma besta

A partir de 6 de outubro do ano cadente,  sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos:  calçada e ferrada de todos os membros  locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita  e crina dividida em duas seções em conseqüência  de um golpe,  cuja  extensão pode alcançar de 4  a 6 centímetros, produzido por jumento.
Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e de boa sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.
Quem, pois, prendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.

Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899.

(a) João Alves Júnior

55 anos depois*, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesma que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério do Itambé. Mas teu anúncio continua modelo no gênero, senão para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.

Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressado e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois o raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.

Não disseste que todos os cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”.  Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.

Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse cálculo”.  Revelas a prudência mineira que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.

Finalmente − deixando de lado outras excelências de tua prosa útil − a declaração positiva: quem a apreender ou pelo menos “notícia exata ministrar”, será “razoavelmente remunerado”. Não prometeste recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.

Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor às tarefas bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.

*Este texto de Carlos Drummond de Andrade foi escrito em 1954.

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