quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Nada de Novo no Front


O romance de Erich Maria Remarque mostra, de modo realista, os horrores, as atrocidades e a estupidez da guerra. Apresenta um punhado de homens maltrapilhos, muitos ainda adolescentes, com fome e assustados, mandados para a frente de batalha. A história do livro transcorre durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).


O texto seguinte mostra todo o desespero e a angústia de Paul Bäumer, o protagonista, diante de uma cena comum na guerra: a morte de um homem. Um homem que ele havia matado.


Imagem da Primeira Guerra Mundial

O silêncio prolonga-se. Falo, preciso falar. Assim, dirijo-me a ele e digo-lhe:

- Companheiro, não queria matá-lo. Se saltasse novamente aqui para dentro, não o faria, se você também fosse razoável. Mas, antes, você era apenas um pensamento, uma dessas abstrações que povoam meu cérebro e que exigem uma decisão... Foi essa abstração que apunhalei. Mas agora, pela primeira vez, vejo que é um ser humano como eu. Pensei nas suas granadas, na sua baioneta e no seu fuzil. Agora, vejo sua mulher, seu rosto e o que temos em comum. Perdoe-me, companheiro. Só vemos as coisas tarde demais. Por que não nos repetem sempre que vocês são também uns pobres-diabos como nós, que suas mães se inquietam como as nossas e que temos o mesmo medo da morte e morremos do mesmo modo, sentindo a mesma dor?...

“Perdoe-me, companheiro, como é que você pôde ser meu inimigo? Se jogássemos fora estas armas e estas fardas, poderia ser meu irmão, como Kat e Albert. Tire vinte anos de minha vida, companheiro, e levante-se... tire mais, porque não sei o que farei deles agora.”

Tudo está tranquilo. A frente está calma, à exceção do crepitar dos fuzis. As balas sucedem-se umas às outras. Eles não atiram ao acaso, mas fazem-me uma pontaria cuidadosa, tanto de um lado quanto do outro. Não posso sair daqui.

- Vou escrever para sua mulher - digo, precipitadamente, ao morto. - Quero escrever-lhe, ela deve sabê-lo por mim, quero dizer-lhe tudo que lhe digo agora, ela não deverá sofrer, quero ajudá-la, e a seus pais também, e ajudar seu filho...

A farda ainda está aberta. É fácil encontrar sua carteira. Mas hesito em abri-la. Dentro dela, há a caderneta militar com seu nome. Enquanto não o souber, talvez ainda possa esquecer o que houve, o tempo encarregar-se-á de apagar esta imagem. Seu nome, entretanto, é um prego que será cravado em mim e nunca mais poderá ser arrancado. Terá o poder de me fazer recordar tudo, para sempre; ressuscitará para surgir de novo diante dos meus olhos.

Indeciso, pego a carteira. Ela cai no chão e se abre, espalhando algumas fotografias e cartas. Recolho-as e quero guardá-las de novo lá dentro, mas a tensão, a incerteza, a fome, o perigo, estas horas passadas com o morto tornaram-me um desesperado. Quero apressar a solução, aumentar a tortura para pôr fim a isto, da mesma maneira como se batesse contra uma árvore uma mão que dói insuportavelmente, sem pensar no que acontecerá depois.

São retratos de uma mulher e de uma menina, pequenas fotografias de amador, tiradas diante de um muro coberto de hera. Junto com elas, há cartas. Tiro-as do envelope e tento lê-las. Não compreendo a maior parte; é difícil decifrar a letra, e sei pouco francês. Mas cada palavra que traduzo, me penetra como um tiro no peito... como uma punhalada no coração...

Meu cérebro atingiu o limiar da loucura, mas ainda estou suficientemente lúcido para saber que jamais poderei escrever a esta gente, como tencionava há pouco. É impossível. Torno a olhar para as fotografias; não se trata de gente rica. Poderia mandar-lhes dinheiro, nonimamente, se, mais tarde, ganhar alguma coisa. Agarro-me a esta idéia: pelo menos, é um pequeno ponto de apoio. Este morto está ligado à minha vida: por isso tenho de fazer e prometer tudo, para me salvar: juro cegamente que pretendo viver só para ele e para sua família; com lábios úmidos, dirijo-me a ele... nas profundidades do meu ser reside a esperança de que, com isto, resgatarei o meu ato e, talvez, ainda consiga escapar; é um pequeno ardil: se, ao menos, me for permitido escapar, então cuidarei disto. Em seguida, abro a caderneta e leio, devagar: Gérard Duval, tipógrafo.

Com o lápis do morto, anoto o endereço num envelope e, em seguida, rapidamente recoloco tudo na sua túnica. Matei o tipógrafo Gérard Duval. Vou ter de me tornar tipógrafo, penso, confusamente, tornar-me tipógrafo, tipógrafo...


Erich Maria Remarque*


* Erich Maria Remarque, pseudônimo de Erich Paul Remark, nasceu no seio de uma família trabalhadora católica alemã. Com 18 anos partiu para as trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial, onde foi ferido várias vezes. Depois da guerra mudou o seu nome para Remarque e teve diversos empregos, incluindo bibliotecário, homem de negócios, professor e editor.

Erich Maria Remarque nasceu a 22 de Junho de 1898 para se vir a tornar num dos mais importantes escritores do séc. XX. Banido pelos nazistas por ser alegadamente descendente de judeus franceses, viu os seus livros serem atirados para a fogueira e foi exilado em 1933 sob acusação de fazer propaganda contra o nacionalismo alemão. Remarque viu, ainda assim, o seu trabalho reconhecido ao mais alto nível da literatura e chegou mesmo a ser um dos grandes candidatos ao Nobel na sua época. Este foi o seu último trabalho completo e a sua obra foi eternizada pelos seus leitores em todo o mundo. Dono de uma escrita magistral e de um profundo conhecimento da alma humana.

Remarque ficará para sempre na história da literatura.




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