Numa
manhã de julho. Deve ser uma manhã gelada. Guardas, que fazem parte da escolta,
retiram da prisão um jovem condenado à morte por parricídio* e o conduzem até a
Santa Casa, no alto da colina. Os praças estão fardadas a rigor: ponche de pano
azul, manta de lã. Camisa de algodão, blusa de brim, calças brancas e chapéu de
barbicacho. Empunham espadas nuas, para evitar a fuga do preso. Marcham a pé,
menos o comandante, que vai a cavalo, à frente.
Diante
da Santa Casa, uma pequena multidão está reunida para ver o condenado. No
oratório, ele é aguardado por familiares e por um padre. Pouco depois, chegam o
juiz das execuções, o escrivão, o meirinho e irmãos da Santa Casa vestidos com
seus balandraus (capas). Lida a sentença, o carrasco retira-lhe as algemas,
manieta-lhe os braços e veste-lhe um amplo casacão de algodão branco. O
comandante da tropa entra no oratório e comunica que a força está formada.
O
condenado sai, no centro de um quadrado de soldados, seguido pelo sacerdote e
por um irmão da Santa Casa.
O
cortejo entra na capela de Nosso Senhor dos Passos, onde o condenado assiste,
genuflexo**, à missa em intenção de sua alma. A seguir, inicia-se a marcha para
o largo da forca, na praça da Harmonia. Determina a lei que o cortejo atravesse
a cidade. Esta tem pouco mais de um quilômetro de extensão entre a Santa Casa e
a praça da Harmonia; e a largura é de pouco mais de quinhentos metros, contados
entre a rua da Praia e a praça da Matriz.
O
cortejo desce a ladeira que liga o largo da Misericórdia*** à rua da Praia.
Noutro tempo, o trecho entre o largo da Misericórdia e a rua da Ladeira,
chamava-se rua da Graça. A rua da Praia, propriamente dita, começava na praça
da Alfândega e ia até a rua da Passagem****. A principal artéria comercial e
residencial da cidade, a rua da Praia se estende à margem do Guaíba. Predominam
sobrados toscos e desgraciosos que abrigam estabelecimento comerciais no térreo
e residências no segundo pavimento. O calçamento é de pedras irregulares.
Diante de cada casa, há pelo menos dois frades de pedra. O escoamento pluvial
se faz pelas sarjetas.
A
rua está apinhada de gente nos passeios. Há espectadores à porta de todas as
casas comerciais e à janela das residências. O cortejo avança devagar,
horrendamente devagar, em meio a um silêncio pesado, enquanto o meirinho faz o
pregão: “Vai se executar a sentença de morte natural, na forca, proferida
contra o condenado.” O cortejo é seguido por cães vadios, que de resto,
infestam a cidade.
Chega-se
finalmente à praça da Harmonia, grande extensão às margens do rio, na ponta da
península. Trata-se de área pantanosa que anos depois será aterrada. Durante a
noite, limpou-se a vegetação rasteira e construiu-se o cadafalso, diante da
igreja das Dores. No público presente, predominam escravos e escolares,
mandados a fim de escarmentá-los com o exemplo do que acontece aos infratores
dos mandamentos e das leis.
No
cadafalso, o meirinho lê a sentença pela última vez e o padre reza em voz alta
o “Creio em Deus”. Num gesto rápido, o carrasco coloca o laço no pescoço do
condenado e retira o alçapão sob seus pés. O corpo se contorce e afinal se
imobiliza.
*****
* parricídio: o assassinato do próprio pai.
** genuflexo:
ajoelhado.
*** Praça Dom
Feliciano
**** Rua General Salustiano
Texto baseado no livro “A Fundação de Porto Alegre”,
de Augusto Porto Alegre
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