A vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé.
(1895-1971)
TRECHOS DO LIVRO
O Barão de Itararé perdia vida, mas
não a piada. O interrogatório a que foi submetido no navio-prisão Pedro I é uma
pérola de nonsense, e do humor brasileiro, e acabou sem que o inquisidor fizesse
nenhuma acusação formal ao preso. Abaixo um trecho do inquérito do humorista,
transcrito de Entre sem bater:
O escrivão abriu a máquina portátil.
Colocou um papel com carbono. O juiz se mexeu e tirou do bolso da calça um
pedaço de papel. Com certeza algo escrito que deveria ser o roteiro do
inquérito. Começou dizendo que naquele momento declarava instalado o
Tribunal de Segurança Nacional destinado a inquirir e processar os
implicados e assim por diante e que ia dar início aos trabalhos fazendo
a qualificação do interrogatório do acusado presente.
‒ Qual o seu
nome?
‒ Ora, doutor, o senhor então
atravessa o Atlântico numa lancha a motor, especialmente para me ouvir, e
não sabe o meu nome?
‒ Bom, isso
aqui é só uma formalidade.
‒ Mas eu estou completamente
informal, nem procurei me vestir. Como é que o senhor vem com
formalidades?
O juiz
virou-se para o escrivão e disse: “Apparício Torelly”.
‒ Ah, o senhor está vendo como sabia
o meu nome! E mesmo assim estava perguntando? Eu sou um homem sério, não faça
isso comigo.
‒ Sua idade?
‒ Esse é outro problema... Não sou
criança, nasci há muito tempo. Vou lhe dizer uma coisa: estou numa
situação de tamanha pressão mental e nervosa que não me lembro das coisas
que me aconteceram ontem. E o senhor que me lembre de quando nasci. Isso é
uma coisa de que não tenho a menor noção no momento.
Ele se virou
para o escrivão e disse: “Quarenta anos presumíveis”.
‒ Presumíveis está muito bem. Aliás,
há agora uma teoria em voga que diz que a vida começa aos quarenta. De
modo que aceite esse palpite.
‒ A que o
senhor atribui sua prisão?
‒ Ora, doutor, eu julgava que o
senhor é que vinha me dizer o motivo da minha prisão. Estava esperando que
o senhor viesse me dizer: o senhor está preso por isso, por aquilo e assim
por diante. Então, com toda a dignidade, eu iria me levantar e contestar
com grande veemência, desmanchar este castelo de cartas, essa acusação
contra uma pessoa séria. E, no entanto, o senhor me desarma e vem
perguntar a mim, como se eu é que fosse o juiz do sítio. Quer saber por
que e eu fui preso? Mas é isso que eu quero saber e o senhor tem a
obrigação de me dizer vai perder a oportunidade de ouvir um brilhante orador, numa defesa
não menos brilhante da sua honra e da sua dignidade.
‒ Mas o senhor nem desconfia? Não tem
a mais vaga suspeita do motivo por que foi preso?
‒ Bem, o senhor já está me falando de
outra maneira, com delicadeza. Isso pede uma meditação. Vou fazer um
esforço de memória para reconstituir os fatos. Ah... Agora estou me
lembrando. Quando fui preso, estava tomando um cafezinho. Em casa, tomava muito
café. E me diziam sempre: não deve tomar tanto café, isso faz mal, um dia
você se arrepende. Só posso atribuir minha prisão ao fato de estar tomando
um cafezinho, o que na minha família sempre disseram que faz muito mal.
“O juiz virou-se então para o
escrivão ‒ contou Apporelly ‒ e disse: Escreva: O depoente informa que vírgula
no momento vírgula não
pode precisar o motivo da sua prisão ponto no entanto vírgula
desconfia vírgula, não tira a vírgula, que foi por causa do cafezinho ponto”.
“Sabe o que quer dizer aquelas duas cobras no anel do médico?”
“Que cobra duas vezes: se cura, cobra; se mata, cobra.”
Apparício na Faculdade de Medicina
Nos dois primeiros anos, durante o curso
de farmácia e química, seu antagonismo nos temidos exames orais era o renomado
professor Cristiano Fischer. Quando este pressionou o novato com uma pergunta
particularmente difícil, o aluno espantou-se: “O senhor, que é doutor em
química, vem perguntar justo a mim?”
Numa aula de anatomia de Sarmento
Leite, catedrático famoso, o estudante encontrou um uma mesa cheia de ossos ao
entra na sala. O professor apanhou um fêmur e estendeu-o em direção ao aluno:
‒ O senhor
conhece este osso?
O jovem Apporelly, igualmente
respeitoso, respondeu rápido, empertigando-se e sacudindo o osso num
cumprimento:
‒ Não,
muito prazer.
Durante outro exame, percebendo que
Aporelly não sabia as respostas, o professor, irônico, pediu ao bedel:
‒ Traga um
pouco de alfafa, por favor.
‒ E para
mim um cafezinho ‒ completou rápido o aluno.
Ao chegar, o professor Marques
Pereira o interrogou:
‒ Senhor Torelly, o senhor sabe o que é um
protozoário?
Apporelly respondeu simplesmente:
‒ Um protozoário é um bichinho muito
pequeno que se enxerga no microscópio.
Insatisfeito com a resposta, o
professor ironizou o estudante, que publicava alguns poemas em Porto Alegre.
‒ Mas o senhor é um literato... Não
poderá responder melhor? Não acha que esse verbo “enxergar” poderia ser
substituído com proveito por “ver”?
Aceitando o desafio, o rapaz limpou a
garganta e anunciou:
‒ Um protozoário, preclaro mestre, é
um animalúnculo tão minúsculo que só pode ser observado através de lentes
côncavas-biconvexas e à luz meridiana. É um ser tão inferior que parece
sentir-se à vontade chafurdando na lama das sarjetas.
Sem assistir a uma aula sequer de
fisiologia prática, ele viu chegar o dia do exame. Na sala repleta de aparelhos
de laboratório de aspecto misterioso para o estudante bissexto, o professor
indicou um instrumento sorteado. Nervoso, Apporelly perguntou ao colega ao lado
o nome do instrumento. Era um “carrinho de Bois-Reymond”. Ele, que não ouviu
bem a cola, arriscou, inseguro, murmurando com o canto da boca:
‒ Carrinho de mão.
Gargalhada geral na sala. O
professor, porém, bastante surdo, acreditou ter ouvido a resposta certa. “Isso
mesmo, carrinho de Bois-Reymond.”
Talvez este episódio tenha inspirado
Apporelly a escrever a pequena história do professor surdo e do aluno cínico:
Professor surdo:
‒ Quantas são as classes dos insetos?
Aluno cínico, a meia voz:
‒ Os heminópteros, os heminópteros,
os heminópteros, os heminópteros e os heminópteros.
Professor surdo:
‒ Falta uma, vagabundo!
Aluno cínico:
‒ Ah! Os heminópteros.
Em outra oportunidade, numa banca de
anatomia, o professor, cansado das respostas erradas do aluno e querendo
ajudá-lo, perguntou: “Quantos rins nós temos?” A pergunta, por sua
simplicidade, provocou risos. Apporelly, entretanto, demorou a responder e,
pensativo, lançou um olhar à sala repleta de estudantes. O professor, irritado,
insistiu:
‒ Vamos! Quantos rins nós temos?
‒ Quatro.
‒ Como?
‒ Sim – disse o aluno – Dois seus e
dois meus.
Apporelly esclarece
Fiz
algumas molecagens na faculdade de medicina de Porto Alegre, à qual não
compareci durante quatro anos, embora fizesse os exames finais e sempre me
saísse bem. Acontece que eu deixara o ginásio com um bom curso fundamental e
estudava, ao acaso, todos os assuntos universitários. Só ia à faculdade por
troça. De tal forma que, quando comparecia às aulas, os professores resolviam
suprimi-las em protesto contra a minha presença. O Dr. Fischer, principalmente,
gostava de proclamar da cátedra quando notava a minha presença entre os outros
alunos: “Em vista do extraordinário comparecimento do senhor Apparício Torelly,
hoje está suspensa a aula.” Era uma farra!
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