sexta-feira, 31 de julho de 2015

Entre sem bater

A vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé.

(1895-1971)


TRECHOS DO LIVRO

O Barão de Itararé perdia vida, mas não a piada. O interrogatório a que foi submetido no navio-prisão Pedro I é uma pérola de nonsense, e do humor brasileiro, e acabou sem que o inquisidor fizesse nenhuma acusação formal ao preso. Abaixo um trecho do inquérito do humorista, transcrito de Entre sem bater:

O escrivão abriu a máquina portátil. Colocou um papel com carbono. O juiz se mexeu e tirou do bolso da calça um pedaço de papel. Com certeza algo escrito que deveria ser o roteiro do inquérito. Começou dizendo que naquele momento declarava instalado o Tribunal de Segurança Nacional destinado a inquirir e processar os implicados e assim por diante e que ia dar início aos trabalhos fazendo a qualificação do interrogatório do acusado presente.
‒ Qual o seu nome?
‒ Ora, doutor, o senhor então atravessa o Atlântico numa lancha a motor, especialmente para me ouvir, e não sabe o meu nome?
‒ Bom, isso aqui é só uma formalidade.
‒ Mas eu estou completamente informal, nem procurei me vestir. Como é que o senhor vem com formalidades?
O juiz virou-se para o escrivão e disse: “Apparício Torelly”.
‒ Ah, o senhor está vendo como sabia o meu nome! E mesmo assim estava perguntando? Eu sou um homem sério, não faça isso comigo.
‒ Sua idade?
‒ Esse é outro problema... Não sou criança, nasci há muito tempo. Vou lhe dizer uma coisa: estou numa situação de tamanha pressão mental e nervosa que não me lembro das coisas que me aconteceram ontem. E o senhor que me lembre de quando nasci. Isso é uma coisa de que não tenho a menor noção no momento.
Ele se virou para o escrivão e disse: “Quarenta anos presumíveis”.
‒ Presumíveis está muito bem. Aliás, há agora uma teoria em voga que diz que a vida começa aos quarenta. De modo que aceite esse palpite.
‒ A que o senhor atribui sua prisão?
‒ Ora, doutor, eu julgava que o senhor é que vinha me dizer o motivo da minha prisão. Estava esperando que o senhor viesse me dizer: o senhor está preso por isso, por aquilo e assim por diante. Então, com toda a dignidade, eu iria me levantar e contestar com grande veemência, desmanchar este castelo de cartas, essa acusação contra uma pessoa séria. E, no entanto, o senhor me desarma e vem perguntar a mim, como se eu é que fosse o juiz do sítio. Quer saber por que e eu fui preso? Mas é isso que eu quero saber e o senhor tem a obrigação de me dizer vai perder a oportunidade de ouvir um brilhante orador, numa defesa não menos brilhante da sua honra e da sua dignidade.
‒ Mas o senhor nem desconfia? Não tem a mais vaga suspeita do motivo por que foi preso?
‒ Bem, o senhor já está me falando de outra maneira, com delicadeza. Isso pede uma meditação. Vou fazer um esforço de memória para reconstituir os fatos. Ah... Agora estou me lembrando. Quando fui preso, estava tomando um cafezinho. Em casa, tomava muito café. E me diziam sempre: não deve tomar tanto café, isso faz mal, um dia você se arrepende. Só posso atribuir minha prisão ao fato de estar tomando um cafezinho, o que na minha família sempre disseram que faz muito mal.
“O juiz virou-se então para o escrivão ‒ contou Apporelly ‒ e disse: Escreva: O depoente informa que vírgula no momento vírgula não pode precisar o motivo da sua prisão ponto no entanto vírgula desconfia vírgula, não tira a vírgula, que foi por causa do cafezinho ponto”.

“Sabe o que quer dizer aquelas duas cobras no anel do médico?”
“Que cobra duas vezes: se cura, cobra; se mata, cobra.”

Apparício na Faculdade de Medicina

Nos dois primeiros anos, durante o curso de farmácia e química, seu antagonismo nos temidos exames orais era o renomado professor Cristiano Fischer. Quando este pressionou o novato com uma pergunta particularmente difícil, o aluno espantou-se: “O senhor, que é doutor em química, vem perguntar justo a mim?”


Numa aula de anatomia de Sarmento Leite, catedrático famoso, o estudante encontrou um uma mesa cheia de ossos ao entra na sala. O professor apanhou um fêmur e estendeu-o em direção ao aluno:
‒ O senhor conhece este osso?
O jovem Apporelly, igualmente respeitoso, respondeu rápido, empertigando-se e sacudindo o osso num cumprimento:
 ‒ Não, muito prazer.


Durante outro exame, percebendo que Aporelly não sabia as respostas, o professor, irônico, pediu ao bedel:
‒ Traga um pouco de alfafa, por favor.
‒ E para mim um cafezinho ‒ completou rápido o aluno.


Ao chegar, o professor Marques Pereira o interrogou:
‒ Senhor  Torelly, o senhor sabe o que é um protozoário?
Apporelly respondeu simplesmente:
‒ Um protozoário é um bichinho muito pequeno que se enxerga no microscópio.


Insatisfeito com a resposta, o professor ironizou o estudante, que publicava alguns poemas em Porto Alegre.
‒ Mas o senhor é um literato... Não poderá responder melhor? Não acha que esse verbo “enxergar” poderia ser substituído com proveito por “ver”?
Aceitando o desafio, o rapaz limpou a garganta e anunciou:
‒ Um protozoário, preclaro mestre, é um animalúnculo tão minúsculo que só pode ser observado através de lentes côncavas-biconvexas e à luz meridiana. É um ser tão inferior que parece sentir-se à vontade chafurdando na lama das sarjetas.


Sem assistir a uma aula sequer de fisiologia prática, ele viu chegar o dia do exame. Na sala repleta de aparelhos de laboratório de aspecto misterioso para o estudante bissexto, o professor indicou um instrumento sorteado. Nervoso, Apporelly perguntou ao colega ao lado o nome do instrumento. Era um “carrinho de Bois-Reymond”. Ele, que não ouviu bem a cola, arriscou, inseguro, murmurando com o canto da boca:
‒ Carrinho de mão.
Gargalhada geral na sala. O professor, porém, bastante surdo, acreditou ter ouvido a resposta certa. “Isso mesmo, carrinho de Bois-Reymond.”


Talvez este episódio tenha inspirado Apporelly a escrever a pequena história do professor surdo e do aluno cínico:
Professor surdo:
‒ Quantas são as classes dos insetos?
Aluno cínico, a meia voz:
‒ Os heminópteros, os heminópteros, os heminópteros, os heminópteros e os heminópteros.
Professor surdo:
‒ Falta uma, vagabundo!
Aluno cínico:
‒ Ah! Os heminópteros.


Em outra oportunidade, numa banca de anatomia, o professor, cansado das respostas erradas do aluno e querendo ajudá-lo, perguntou: “Quantos rins nós temos?” A pergunta, por sua simplicidade, provocou risos. Apporelly, entretanto, demorou a responder e, pensativo, lançou um olhar à sala repleta de estudantes. O professor, irritado, insistiu:
‒ Vamos! Quantos rins nós temos?
‒ Quatro.
‒ Como?
‒ Sim – disse o aluno – Dois seus e dois meus.

Apporelly esclarece

Fiz algumas molecagens na faculdade de medicina de Porto Alegre, à qual não compareci durante quatro anos, embora fizesse os exames finais e sempre me saísse bem. Acontece que eu deixara o ginásio com um bom curso fundamental e estudava, ao acaso, todos os assuntos universitários. Só ia à faculdade por troça. De tal forma que, quando comparecia às aulas, os professores resolviam suprimi-las em protesto contra a minha presença. O Dr. Fischer, principalmente, gostava de proclamar da cátedra quando notava a minha presença entre os outros alunos: “Em vista do extraordinário comparecimento do senhor Apparício Torelly, hoje está suspensa a aula.” Era uma farra!



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