quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O Combate

Darcy Azambuja


O combate foi bem defronte à Granja Nova. Desde o começo da revolução, aquela região povoada e fértil, a cavaleiro de rumos propícios para incursões e retiradas, vinha sendo constantemente batida pelas forças em luta. Os donos tinham-na abandonado, suspenso qualquer trabalho por impossível. E pouco e pouco se consumou a destruição do labor de tantos anos.

Os aramados por terra, as taipas arrombadas, queimado como lenha e madeiramento das calhas, o arrozal amassado na lama endurecida, as máquinas enferrujando às intempéries, abatidos os rebanhos, as invernadas feito campo raso, logradouro de quem quisesse... Ao canto da lavoura, tinham parado as asas do catavento, cansadas de girar. Todo o campo talado e aberto. Fizeram-se arena, onde sempre tremulava alguma flâmula de guerra.

(...)

Em dado momento, quatro cavaleiros destacaram-se da ala esquerda dos atacantes e vieram, abrigando-se em árvores, em direção à mangueira, que ficava ao lado da Granja. Choveram balas, e três deles caíram. Mas o último alcançou a mangueira e em pouco a cavalhada ali encerrada espalhou-se pelo campo, aos gritos de alegria e escárnio dos atacantes.

Preparavam-se, estes, para uma carga decisiva. À voz de - “a cavalo” - formou-se prestes um esquadrão e, entre os da “testa”, o velho Severo perfilava-se, rijo, como remoçado. Remoçara, de fato, com a vida guerreira. Sentia-se novo, e aguentava alegre, como da “outra”, a existência vibrante e dura de marchas forçadas, de acampamentos, sempre no lombo do pingo, combatendo sempre, comendo quando Deus queria.

A memória realizava-se, dando-lhe a suprema alegria de reviver o passado, as suas velhas saudades, as visões que lhe povoavam a lembrança, os seus hábitos e os seus ódios antigos, todo o outro tempo, os “velhos tempos” que tanto viveram dentro deles, e eram agora reais; e os seus setenta anos remoçavam nas lutas recomeçadas.

Os cavalos caracolavam, empinando-se tomados também do anseio dos cavalheiros. Ao sinal dado, num - vá! - despenharam-se, em clamor de tempestade. A lança em riste, inclinados sobre o pescoço dos cavalos, as faces convulsionadas numa ânsia de vertigem, eram uma crespa.

Severo foi dos primeiros a cair, e ficou à meia-encosta, ouvindo o eco pavoroso dos gritos e detonações, nitridos e estrondos num bárbaro reboar.

E morrendo, numa última visão, sintetizou os pagos todos, vendo-os como os vira outrora, há muitos anos: tudo aberto, escampo, e o solar feito baluarte estrondejante de descargas em meio à campanha em guerra...

E o duro lutador ainda murmurou: “- Agora sim...”. Agora sim, os seus pagos tinham revivido.

E pendeu a cabeça, os olhos já vidrados, consolado em morrer pela vida que voltava.

(No Galpão, 1925)


Nenhum comentário:

Postar um comentário