quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Palavra de médico

Não há como evitá-los


J.J. Camargo é cirurgião e chefe do Setor de Transplante
da Santa Casa de Misericórdia

Os chatos têm passe livre e circulam em todas as áreas e se sentem perfeitamente à vontade porque possuem aquela leveza que lhes confere a completa falta de autocrítica. A julgar pela frequência com que renomados cronistas têm se ocupado em descrevê-los, a legião é enorme e de distribuição universal.

 Na medicina, a variedade é imensa, e quando um grupo de médicos começa a descrever os modelos, percebe-se claramente que eles se repetem como padrões de comportamento. Há o chato de consultório e o chato do hospital, há o chato do convênio e o muito chato que se diz amigo do dono do convênio, todos com características próprias e arrasadoras.

O chato do consultório, solicitado a contar a sua história, nunca sabe por onde começar, mas quando finalmente embala, não para mais e se prende a detalhes irritantes e inúteis. Como o chato internacional: “A primeira vez que eu senti esta dor, eu estava no Egito, não, não, não, no Marrocos, em 1991”. Este chato quase sempre é casado com uma chata minuciosa e perfeccionista: “Queriiido, a gente esteve no Marrocos em 1995, lembra?”.

Um chato mais raro, mas muito interessante, é aquele que conta a história olhando para a mulher, buscando a aprovação dela, e eles acabam debatendo sintomas, como se o médico tivesse saído da sala. O chato rancoroso quase sempre é uma mulher, e antes de começar a consulta, já anuncia: “Na semana passada, consultei com o Doutor Fulano. Esse se acha muito, nem me olhou, que homem nojento!”.

Um bem comum é o chato que senta na frente do médico, com uma enorme sacola desordenada nas mãos e fica selecionando quais exames, na opinião especializada dele, vale a pena mostrar para este infeliz que ele veio consultar: “Este aqui é do coração, então não adianta lhe mostrar... Este aqui também não é da sua área...”.

Há o chato chantagista: “Doutor, antes de começar, queria lhe dizer que eu faltei ao trabalho para consultar, e como o senhor atrasou quase uma hora, não vai adiantar eu voltar lá. Imagino que o senhor não vai se negar a me dar um atestado para o dia inteiro, pois não?”.

Outro chato frequente é o intimidador: “Já vou lhe avisando que o meu caso não é fácil. O senhor é o oitavo médico que eu consulto e, até agora, nada”. (Quer dizer: “Ninguém se surpreenderá se o senhor também errar!”).

O desconfiado é indefectível: “O senhor já fez esta operação antes?”. Talvez o mais difícil seja o incrédulo intimista: “Vim ouvir a sua opinião, mas já vou adiantando: eu não acredito que tenha um câncer porque não sinto nada, e ninguém conhece meu corpo melhor do que eu!”. Neste grupo, um chato mais refinado chamaria o corpo de "organismo."

Se você veio até este parágrafo, vou ter de explicar: esta coluna tem um tamanho pré-estabelecido, ao contrário do universo dos chatos. Pode parecer chato, mas vou ter de parar por aqui.

(Caderno Vida de ZH – janeiro de 2014)



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