Não há como evitá-los
J.J. Camargo é
cirurgião e chefe do Setor de Transplante
da Santa Casa de
Misericórdia
Os chatos têm passe livre e
circulam em todas as áreas e se sentem perfeitamente à vontade porque possuem
aquela leveza que lhes confere a completa falta de autocrítica. A julgar pela
frequência com que renomados cronistas têm se ocupado em descrevê-los, a legião
é enorme e de distribuição universal.
Na medicina, a variedade é imensa, e
quando um grupo de médicos começa a descrever os modelos, percebe-se claramente
que eles se repetem como padrões de comportamento. Há o chato de consultório e
o chato do hospital, há o chato do convênio e o muito chato que se diz amigo do
dono do convênio, todos com características próprias e arrasadoras.
O chato do consultório, solicitado a
contar a sua história, nunca sabe por onde começar, mas quando finalmente
embala, não para mais e se prende a detalhes irritantes e inúteis. Como o chato
internacional: “A primeira vez que eu senti esta dor, eu estava no Egito, não,
não, não, no Marrocos, em 1991” .
Este chato quase sempre é casado com uma chata minuciosa e perfeccionista: “Queriiido,
a gente esteve no Marrocos em 1995, lembra?”.
Um chato mais raro, mas muito
interessante, é aquele que conta a história olhando para a mulher, buscando a
aprovação dela, e eles acabam debatendo sintomas, como se o médico tivesse
saído da sala. O chato rancoroso quase sempre é uma mulher, e antes de começar
a consulta, já anuncia: “Na semana passada, consultei com o Doutor Fulano. Esse
se acha muito, nem me olhou, que homem nojento!”.
Um bem comum é o chato que senta na
frente do médico, com uma enorme sacola desordenada nas mãos e fica
selecionando quais exames, na opinião especializada dele, vale a pena mostrar
para este infeliz que ele veio consultar: “Este aqui é do coração, então não
adianta lhe mostrar... Este aqui também não é da sua área...”.
Há o chato chantagista: “Doutor, antes
de começar, queria lhe dizer que eu faltei ao trabalho para consultar, e como o
senhor atrasou quase uma hora, não vai adiantar eu voltar lá. Imagino que o
senhor não vai se negar a me dar um atestado para o dia inteiro, pois não?”.
Outro chato frequente é o intimidador:
“Já vou lhe avisando que o meu caso não é fácil. O senhor é o oitavo médico que
eu consulto e, até agora, nada”. (Quer dizer: “Ninguém se surpreenderá se o
senhor também errar!”).
O desconfiado é indefectível: “O
senhor já fez esta operação antes?”. Talvez o mais difícil seja o incrédulo
intimista: “Vim ouvir a sua opinião, mas já vou adiantando: eu não acredito que
tenha um câncer porque não sinto nada, e ninguém conhece meu corpo melhor do
que eu!”. Neste grupo, um chato mais refinado chamaria o corpo de
"organismo."
Se você veio até este parágrafo, vou
ter de explicar: esta coluna tem um tamanho pré-estabelecido, ao contrário do
universo dos chatos. Pode parecer chato, mas vou ter de parar por aqui.
(Caderno Vida de ZH –
janeiro de 2014)
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