Francisco Riopardense de Macedo
Era uma noite porto-alegrense
daquelas que a gente, ao deitar, cobrindo-se sente calor, mas não pode deixar
de fazê-lo porque sentiria frio. Destas coisas que talvez não serão
compreendidas em outra parte. E como são as sensações físicas do meio sono que
provocam os sonhos ou pesadelos, aquela dormida foi começando devagarinho em
meia penumbra, méis-tintas, que logo se transformaram numa neblina de madrugada
silenciosa, em que andávamos na Praça Montevidéu. Nossa atenção foi despertada
por um vulto masculino, que se destacava daquela atmosfera pesada e sem cor.
-
Fogo, por favor.
Felizmente, nosso isqueiro de duas
rosetas grandes funcionou logo, por sorte, desde a primeira raspada numa delas.
Como de hábito, nas madrugadas vazias, puxamos um “papo” com o estranho,
curiosos por saber o que fazia àquela hora da madrugada, sozinho, encostado na
porta do Banco de São Paulo.
-
Olhando o prédio, a Intendência.
- Intendência? – perguntei
meio admirado daquele nome. O amigo que se referir à Prefeitura, que está sendo
pintada.
- Para mim é Intendência.
Em 1898, era o nome escrito em todas as plantas, e também na ata que colocamos
na pedra fundamental. Você não imagina a trabalheira que deu. Em certos lugares
tivemos de ir com as fundações até quatro metros e meio. O mínimo foi de dois e
vinte.
Comecei a desconfiar daquele cidadão,
que falava manso como se o tempo não existisse para ele. Notei que a manhã não
se alterava em nada, tudo envolto naquele cinza pesado no qual se divisava
apenas os contornos da figura, que falava sem pressa, com os olhos fixos no
prédio.
Um táxi de luz alta cortou a neblina,
vindo do mercado e subiu a rua com a descarga aberta, quebrando o silêncio que
aquecia nossa prosa.
- Que barulheira! Não era
assim naquele tempo, nem havia a rua por onde subiu essa carruagem maluca. Como
é o nome dela?
- Avenida Borges de
Medeiros.
- Imagine, uma avenida!
Aqui era só uma fiada de casas que ia até o outro lado, até aquelas árvores.
Terminava com o edifício Malakoff, que era o maior da cidade. Tudo isto era
chamado Praça 15, não sei se ainda é, mas
ali naquele lado – e apontou para o prédio do Banco do Brasil – também eram
casas baixas de um só andar, e tudo terminava na doca, na beira d´água.
- Que beira d´água?
- O rio, seu moço. Não
estou lhe dizendo que nós tivemos de levar as fundações da Intendência para
mais de quatro metros? E sabe o que é isto, de se fazer buraco dentro d´água e
puxar o lodo com carroça? O rio ficou ali mesmo, logo atas, onde está aquele
prédio grande, com cara de mais velho do que este.
Percebi que estava se referindo à Prefeitura
nova e que esta não o agradava. O cigarro do meu amigo ia se acabando e ele
insistia num toco apagado. Esgrimo de novo meu isqueiro e o ajudo a continuar,
fazendo uma pergunta para me aliviar:
- E a pintura?
- Já reparei, está ficando
boa. Não se pôde fazer coisa melhor naquela época. Você que ver? Tenho ainda
aqui no bolso o que custou tudo isto. Está aqui, quatrocentos e quarenta e um
contos, cento e vinte e um mil, novecentos e setenta e dois réis...
-
Tudo?
- Sim, menos a pintura e instalações que foram a... deixa
eu ver... está aqui na outra página: cinquenta e oito contos, novecentos e doze
mil trezentos e trinta e sete réis. Eles quiseram separar isto da construção do
prédio. A maldita mania de economizar até com obras como esta. O Montaury,
depois, no relatório, se orgulhava porque o metro quadrado tinha sido mais
barato que o de outra obra pública do Estado. Mas agora estou contente.
Finalmente a Intendência vai ser pintada como deve ser o neoclássico. Você sabe
o que é neoclássico?
- Tenho uma vaga ideias –
respondi meio com medo. Continuei numa pergunta:
- Aquelas estátuas que
estão lá em cima?
Não lembro bem se cheguei mesmo a
formular a pergunta inteira, nem sei se peguei no braço do homem. Mas senti que
aquele vulto, impreciso mas muito falante, foi comigo até a beira da calçada,
e, o que é curioso, no meio daquela neblina pesada, onde tudo tinha a mesma
cor, se destacavam as esculturas lá em cima, num tom de cobre velho. Entendei
muito bem suas palavras, cada vez mais lentas:
- Ótimo, é isto mesmo. Você
sabe que apesar de feitas de cimento, cal e areia, elas deveriam aparentar um
metal que significasse resistência e perpetuidade. A simbologia positivista,
você pode reparar...
Não entendi mais nada daí em diante,
mas aprontava-me, a perguntar sobre o relógio quando, não sei como nem de onde
veio, senti forte batida no braço esquerdo e uma voz mais enérgica falar:
- Acorda, homem, está na
hora.
A luz, coada pelas frestas da
veneziana, entrava devagar no quarto ainda em penumbra. E vi os
móveis, a cama e o cobertor com que lutara a noite inteira, sem saber. Ainda
sonolento, abri mais os olhos e vi tudo, sem compreender muito bem.
- O que há? Espera, deixa
eu acordar. Não, não deixa, espera que eu termine de perguntar...
- Perguntar o quê? Estás
sonhando?
- Estava e te garanto que
vi o Colfosco.
- ???
- João Antônio Luiz Carrara
Colfosco, engenheiro arquiteto que projetou a Intendência, isto é, Palácio, ou
melhor, a Prefeitura que agora foi pintada. Faz muito tempo, morreu em 1910.
Prefeitura - 1925
João Antônio Luís Carrara Colfosco ou Giovanni Antonio Luigi Carrara
Colfosco (Veneza,
Itália (?) - Rosário do Sul, RS, 8 de outubro de 1910) foi um engenheiro italiano estabelecido no Rio Grande do Sul.
* Este conto é de 1982 e está no livro “Porto Alegre: Aspectos Culturais”.
* Este conto é de 1982 e está no livro “Porto Alegre: Aspectos Culturais”.
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