"O livro deve ser sentido e cheirado, aberto e lido."
O que é, o que é?
Que te leva para viajar sem sair do lugar.
Que vai contigo à praia,
ou te acompanha em dias de chuva.
Que envelhece sem perder o encanto.
Que te deixa saudades.
Que cai no chão, mas não quebra.
Que não enguiça.
(Travessa - edição especial)
Nasci na encosta de um outeiro. E
fiquei, dentro em pouco, um pinheiro delgado e elegante. Tão elegante que uma
senhora, passando com seus filhos por perto de mim, desejou-me para árvore de
natal.
– Como ficará lindo carregadinho de
presentes e de doces, com as velinhas de cores – exclamou uma das meninas que
acompanhavam a senhora.
Estremeci até às raízes, pensando que
logo me haviam de arrancar para, no grande e festivo dia das crianças, ir
adornar o salão de uma escola ou de uma casa abastada.
Passaram-se, porém, muitos anos e
ninguém veio buscar-me para a festa do Natal. Minhas raízes aprofundaram-se
mais; meu tronco tornou-se alto e forte; estendi para o céu a ramaria possante,
que as tempestades não puderam derribar. Todos os anos as pinhas enfeitavam
meus galhos; e, quando amadureciam, aves, animais e homens vinham à minha
sombra colher os frutos que se espalhavam pelo chão. Eu era a maior e a mais
bela de todas as árvores daquela região.
Mas o dia funesto chegou. Um homem
aproximou-se de mim, olhou-me com atenção de alto a baixo, e fez, a facão, um
sinal no meu tronco. Vieram depois operários musculosos, de machado em punho; e
logo estava eu deitado no solo, com os ramos partidos. Estava reduzido a um
simples madeiro? eu, o rei dos vegetais de toda aquela redondeza...
Arrastaram-me, em seguida, para uma
fábrica e reduziram-me a uma polpa branca. Nenhum dos meus camaradas me houvera
reconhecido, quando, transformado em alvo lençol, sofria a última demão, a fim
de aparecer no mercado sob a forma de papel. Que torturas padeci: os golpes
mortíferos do machado, o talho agudo das lâminas que me dilaceravam, o aperto
horrível de engrenagens que me esmagavam, o atrito áspero de mós que me
pulverizavam, o ardor das drogas que me fizeram pálido... Depois de tudo isso,
colocaram-me numa prensa, da qual saí para uma longa viagem.
Vendeu-me um negociante a um
impressor. Fui para uma tipografia, onde novas angústias me esperavam.
Puseram-me num prelo, no qual, em giros vertiginosos, palavras e gravuras eram
sobre mim estampadas. Dobraram-me depois. Cortaram-me. Coseram-me. Cobriram-me
com duas capas de cartão. E eis-me aqui, agora, meu amigo, para ir contigo à
escola.
Não me maltrates nem me desprezes. Muito
sofri para trazer-te a sabedoria dos antigos, as lições da experiência, a
expressão dos prosadores e poetas, que enriqueceram tua língua materna e
fizeram meigo e suave teu idioma.
Ama-me e
lê-me: eu sou teu livro!
(Apólogo de Erasmo
Braga)*
*Erasmo de Carvalho Braga (Rio Claro, 23 de abril de 1877 –
Niterói, 11 de maio de 1932) foi um pastor presbiteriano, educador e
intelectual brasileiro.
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