terça-feira, 3 de novembro de 2015

O santo nome da pressa

Santo Expedito nunca existiu,
mas virou alvo de culto 
porque seu nome conquistou a imaginação popular


Santo Expedito é um convite para interessantes questões de linguagem e importantes tópicos suscitados por sua figura. A proximidade de sua festa, 19 de abril, é ocasião para aferir sua popularidade, pois parece que ele anda um pouco sumido. Após anos de sucesso, como campeão das causas urgentes, sua visibilidade anda um tanto em baixa. Há muito que não me oferecem santinhos nem vejo em São Paulo aquelas faixas: “Agradeço a Santo. Expedito pela graça alcançada” (pelo jeito, ele veio na contramão do provérbio: “Quem espera sempre alcança”).

Religiosidade

No auge da devoção ao santo despachante, muitos até se permitiam expressar-se com dizeres mais familiares, como “Valeu, Expedito, te devo mais uma”. Expedito, como veremos, convida ao tratamento descontraído, na linha descrita já em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda:

“Nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos. A popularidade, entre nós, de uma santa Teresa de Lisieux – santa Teresinha – resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto, culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. (...) foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, 'democrático', um culto em que se dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso”.

Culto

O boom de devoção a Expedito no Brasil começou em 1983, quando Eli Corrêa (“oiii geenteee!”), locutor de um programa popular, inicialmente na Rádio América de São Paulo, começou a divulgar diariamente graças alcançadas pela intercessão do santo. Logo juntar-se-ia ao programa o padre João Benedicto Villano, tenente-coronel capelão da Polícia Militar, da qual Expedito é o padroeiro. Na virada de 2000, a revista Veja já o qualificava como santo “da moda” e noticiava que em 1999 foram feitos 72 milhões de santinhos, quadruplicando os 18 milhões do ano anterior. A estratégia de marketing era a de distribuir mil santinhos imediatamente após a obtenção da graça e, assim, em poucos anos, 2 ou 3 santinhos a cada brasileiro.

Em 2004, St. Expeditus ganhou até a primeira página do Wall Street Journal: “Jobless Brazilians Needing Fast Action Call on St. Expeditus”. Mas, em 2001, a Vejinha já noticiava que Expedito havia ocupado o primeiro lugar na devoção dos paulistanos (evidentemente, pressa é para paulistano; na Bahia, de Dorival Caimmy, Expedito não tem devotos à altura...) desbancando o trio antiaperto: são Judas Tadeu (das causas impossíveis), santa Rita de Cássia (dos desesperados) e Edwiges (a dos inadimplentes). Claro que, na época, arrumar emprego, sair do cheque especial, pagar as prestações das Casas Bahia – causas impossíveis, geradoras de desespero e inadimplência – foram encampadas por nosso santo, a título de urgentes, com a vantagem de que Expedito resolve na hora...

Predestinado

Nunca existiu um santo Expeditus: seu nome advém da característica do personagem (como nos esquetes dos programas de humor, nos quais o marido traído se chama “Cornélio”...). É que Expedito, em latim e português, significa: rápido, desembaraçado, o homem que vai e resolve, sem burocracias (não por acaso, sua igreja fica nos fundos do quartel da Rota: seus devotos originais...) ou, como ensina Pasquale Cipro Neto:

“Expedito' é o particípio do verbo latino expedire ('desembaraçar os pés', 'pôr os pés para fora', ou seja, pô-los para andar, para correr). Em 'expedir' há os elementos latinos ex-('movimento para fora') e 'pede', 'pedis' ('pé'). É por isso que, como adjetivo, 'expedito' significa 'ágil', 'rápido', 'desembaraçado'. O verbo 'impedir' é da mesma família de 'expedir'. Temos aí o elemento latino in-, de valor negativo. Literalmente, 'impedir' significa 'não deixar andar', travar'".

Valor simbólico

O fato é que não há base histórica que avalize sua existência... Na verdade, para o povão devoto, isso não faz diferença - se ele existiu ou não, é detalhe -, o que conta é seu valor simbólico. Nesse sentido, André Comte-Sponville, em O Espírito do Ateísmo, lembra a história:
“Dois rabinos jantam juntos. São amigos. Discutem até tarde da noite sobre a existência de Deus. E concluem que, afinal de contas, Deus não existe. Os dois rabinos vão dormir. Nasce o dia. Um dos dois rabinos acorda, procura seu amigo dentro de casa, não o encontra, vai procurá-lo fora, no jardim, onde por fim o encontra, fazendo as preces rituais da manhã. Surpreso, pergunta-lhe:
“Ué, o que você está fazendo?”
“Não está vendo? Minhas preces rituais da manhã.”
“Pois é isso mesmo que me espanta. Conversamos boa parte da noite e chegamos à conclusão de que Deus não existe, e você agora faz as suas preces rituais da manhã!”
O outro lhe responde:
“E o que Deus tem a ver com isso?”.

Lenda

A lenda diz que Expedito era comandante militar do início do século 4 – veio a sofrer o martírio por não renegar a fé cristã –, que ficava adiando sua conversão ao cristianismo. Quem observar o santinho, verá que Expedito segura uma cruz na qual está escrito hodie (em latim, "hoje") e esmaga com o pé um corvo que diz "cras", que em latim significa "amanhã" (daí o nosso "procrastinar"); "cras" é a onomatopeia do corvo (como "miau" é a do gato).

Os padres da Igreja comentam esse jogo de palavras (hodie/cras) sem mencionar nenhum protagonista. Para eles, trata-se só de um sugestivo modo de catequese. Se tivesse havido um mártir com esse enredo, Santo Agostinho (354-430), São Cesário de Arles (470-543) e outros que pregam sobre o abominável corvo do "cras", certamente não teriam ficado só na análise das palavras. Teriam exaltado o herói cristão, que venceu o diabo (alegorizado no corvo) e seus adiamentos. Aliás, os padres costumam fazer trocadilhos e jogos de palavras com os mártires, como no caso das santas mártires Felicidade e Perpétua (“foram para o Céu para gozar da felicidade perpétua”).

(Revista da Língua Portuguesa)





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