Santo Expedito nunca existiu,
mas virou alvo de culto
porque seu nome conquistou a
imaginação popular
Santo Expedito é um convite para
interessantes questões de linguagem e importantes tópicos suscitados por sua
figura. A proximidade de sua festa, 19 de abril, é ocasião para aferir sua
popularidade, pois parece que ele anda um pouco sumido. Após anos de sucesso,
como campeão das causas urgentes, sua visibilidade anda um tanto em baixa. Há muito que não
me oferecem santinhos nem vejo em
São Paulo aquelas faixas: “Agradeço a Santo. Expedito pela
graça alcançada” (pelo jeito, ele veio na contramão do provérbio: “Quem espera sempre
alcança”).
Religiosidade
No auge da devoção ao santo
despachante, muitos até se permitiam expressar-se com dizeres mais familiares,
como “Valeu, Expedito, te devo mais uma”. Expedito, como veremos, convida ao
tratamento descontraído, na linha descrita já em Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda:
“Nosso velho catolicismo, tão
característico, que permite tratar os santos com uma intimidade quase
desrespeitosa e que deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas,
provém ainda dos mesmos motivos. A popularidade, entre nós, de uma santa Teresa
de Lisieux – santa Teresinha – resulta muito do caráter intimista que pode
adquirir seu culto, culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às
cerimônias e suprime as distâncias. (...) foi justamente o nosso culto sem
obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com
alguma impropriedade, 'democrático', um culto em que se dispensava no fiel todo
esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela
base, o nosso sentimento religioso”.
Culto
O boom de devoção a Expedito no
Brasil começou em 1983, quando Eli Corrêa (“oiii geenteee!”), locutor de um
programa popular, inicialmente na Rádio América de São Paulo, começou a
divulgar diariamente graças alcançadas pela intercessão do santo. Logo
juntar-se-ia ao programa o padre João Benedicto Villano, tenente-coronel
capelão da Polícia Militar, da qual Expedito é o padroeiro. Na virada de 2000, a revista Veja já o
qualificava como santo “da moda” e noticiava que em 1999 foram feitos 72
milhões de santinhos, quadruplicando os 18 milhões do ano anterior. A
estratégia de marketing era a de distribuir mil santinhos imediatamente após a
obtenção da graça e, assim, em poucos anos, 2 ou 3 santinhos a cada brasileiro.
Em 2004, St .
Expeditus ganhou até a primeira página do Wall Street Journal: “Jobless
Brazilians Needing Fast Action Call on St. Expeditus”. Mas, em 2001, a Vejinha já
noticiava que Expedito havia ocupado o primeiro lugar na devoção dos
paulistanos (evidentemente, pressa é para paulistano; na Bahia, de Dorival
Caimmy, Expedito não tem devotos à altura...) desbancando o trio antiaperto:
são Judas Tadeu (das causas impossíveis), santa Rita de Cássia (dos desesperados)
e Edwiges (a dos inadimplentes). Claro que, na época, arrumar emprego, sair do
cheque especial, pagar as prestações das Casas Bahia – causas impossíveis,
geradoras de desespero e inadimplência – foram encampadas por nosso santo, a
título de urgentes, com a vantagem de que Expedito resolve na hora...
Predestinado
Nunca existiu um santo Expeditus: seu
nome advém da característica do personagem (como nos esquetes dos programas de
humor, nos quais o marido traído se chama “Cornélio”...). É que Expedito, em
latim e português, significa: rápido, desembaraçado, o homem que vai e resolve,
sem burocracias (não por acaso, sua igreja fica nos fundos do quartel da Rota:
seus devotos originais...) ou, como ensina Pasquale Cipro Neto:
“Expedito' é o particípio do verbo
latino expedire ('desembaraçar os pés', 'pôr os pés para fora', ou seja, pô-los
para andar, para correr). Em 'expedir' há os elementos latinos ex-('movimento
para fora') e 'pede', 'pedis' ('pé'). É por isso que, como adjetivo, 'expedito'
significa 'ágil', 'rápido', 'desembaraçado'. O verbo 'impedir' é da mesma
família de 'expedir'. Temos aí o elemento latino in-, de valor negativo.
Literalmente, 'impedir' significa 'não deixar andar', travar'".
Valor simbólico
O fato é que não há base histórica
que avalize sua existência... Na verdade, para o povão devoto, isso não faz
diferença - se ele existiu ou não, é detalhe -, o que conta é seu valor
simbólico. Nesse sentido, André Comte-Sponville, em O Espírito do Ateísmo,
lembra a história:
“Dois rabinos jantam juntos. São
amigos. Discutem até tarde da noite sobre a existência de Deus. E concluem que,
afinal de contas, Deus não existe. Os dois rabinos vão dormir. Nasce o dia. Um
dos dois rabinos acorda, procura seu amigo dentro de casa, não o encontra, vai
procurá-lo fora, no jardim, onde por fim o encontra, fazendo as preces rituais
da manhã. Surpreso, pergunta-lhe:
“Ué, o que
você está fazendo?”
“Não está
vendo? Minhas preces rituais da manhã.”
“Pois é isso mesmo que me espanta.
Conversamos boa parte da noite e chegamos à conclusão de que Deus não existe, e
você agora faz as suas preces rituais da manhã!”
O outro lhe
responde:
“E o que
Deus tem a ver com isso?”.
Lenda
A lenda diz que Expedito era
comandante militar do início do século 4 – veio a sofrer o martírio por não
renegar a fé cristã –, que ficava adiando sua conversão ao cristianismo. Quem
observar o santinho, verá que Expedito segura uma cruz na qual está escrito hodie
(em latim, "hoje") e esmaga com o pé um corvo que diz
"cras", que em latim significa "amanhã" (daí o nosso
"procrastinar"); "cras" é a onomatopeia do corvo (como
"miau" é a do gato).
Os padres da Igreja comentam esse
jogo de palavras (hodie/cras) sem mencionar nenhum protagonista. Para eles,
trata-se só de um sugestivo modo de catequese. Se tivesse havido um mártir com
esse enredo, Santo Agostinho (354-430), São Cesário de Arles (470-543) e outros
que pregam sobre o abominável corvo do "cras", certamente não teriam
ficado só na análise das palavras. Teriam exaltado o herói cristão, que venceu
o diabo (alegorizado no corvo) e seus adiamentos. Aliás, os padres costumam
fazer trocadilhos e jogos de palavras com os mártires, como no caso das santas
mártires Felicidade e Perpétua (“foram para o Céu para gozar da felicidade
perpétua”).
(Revista da Língua
Portuguesa)
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