O susto
Mário Quintana
Isso foi há
muito tempo, na infância provinciana do autor, quando havia serões em família.
Juquinha
está lendo em voz alta, A Confederação dos Tamoios.
Tarararararara, tarararararara
Tarararararara, tarararararara
Lá pelas
tantas, Gabriela deu o estrilo:
– Mas não
tem rima!
Sensação.
Ninguém parava de não acreditar. Juquinha, desamparado, lê às pressas os finais
dos últimos versos... quérulo... branco...
tuba... inane... vaga... Infinitamente...
Meu Deus!
Como poderia ser aquilo?!
A rima deve
estar no meio – diz, sentencioso, o major Pitaluga.
E todos
suspiraram, agradecidos.
Mário Quintana (Sapato
florido, Ed. Globo, 1948, p 116)
O repórter policial
Stanislaw Ponte Preta
O repórter policial, tal como o
locutor esportivo, é um camarada que fala uma língua especial, imposta pela
contingência: quanto mais cororoca melhor. Assim como o locutor esportivo jamais
chamou nada pelo nome comum, assim também o repórter policial é um entortado
literário. Nessa classe, os que se prezam nunca chamariam um hospital de
hospital. De jeito nenhum. É nosocômio. Nunca, em tempo algum, qualquer vítima
de atropelamento, tentativa de morte, conflito, briga ou simples indisposição
intestinal foi parar num hospital. Só vai para o nosocômio.
E assim sucessivamente. Qualquer
cidadão que vai à Polícia prestar declarações que possam ajudá-la numa
diligência (apelido que eles puseram no ato de investigar), é logo apelidado de
testemunha-chave. Suspeito é Míster X, advogado é causídico, soldado é militar,
marinheiro é naval, copeira é doméstica e, conforme esteja deitada, a vítima de
um crime – de costas ou de barriga pra baixo – fica numa destas duas incômodas
posições: decúbito dorsal ou decúbito ventral.
Num crime descrito pela imprensa
sangrenta a vítima nunca se vestiu. A vítima trajava. Todo mundo se veste,...
mas basta virar vítima de crime, que a rapaziada sadia ignora o verbo comum e
mete lá: “A vítima trajava terno azul e gravata do mesmo tom”. Eis, portanto,
que é preciso estar acostumado ao “métier” para morar no noticiário policial.
Como os locutores esportivos, a Delegacia do Imposto de Renda, os guardas de
trânsito, as mulheres dos outros, os repórteres policiais nasceram para
complicar a vida da gente. Se um porco morde a perna de um caixeiro de uma
dessas casas da banha, por exemplo, é batata... a manchete no dia seguinte tá
lá: “Suíno atacou comerciário”.
Um mundo de papel
Rubem Braga
Foi em Minas, creio, que um
secretário de Estado mandou afixar em sua repartição esta frase com um conselho
aos funcionários: “Não basta despachar o papel, é preciso resolver o caso”.
Quem fez isso devia ser um empírico,
sem uma verdadeira e fina vocação burocrática. O exemplo mais brilhante dessa
vocação deu-o anos atrás um cavalheiro cujo nome não sei; era presidente da
Câmara Municipal de S. João do Meriti.
Foi o caso que morreu um vereador, e
seu suplente quis tomar posse. O presidente exigiu dele a certidão de óbito do
vereador. O suplente disse que não a trouxera, mas podia providenciar depois;
achava, entretanto, que não havia inconveniente em tomar posse naquela mesma
sessão…
O presidente respondeu:
– Não é questão de conveniência ou
inconveniência. O que há é impossibilidade. O suplente não pode se empossar sem
estar provada a morte do vereador.
– Mas V.
Ex.ª não ignora que o vereador morreu…
– A prova do falecimento é a certidão de
óbito.
– Mas V. Exª. tomou conhecimento
oficial da morte; V.Ex.ª, como presidente da Mesa, praticou vários atos
oficiais motivados por essa morte!
– A prova do
falecimento é a certidão de óbito.
– Mas o
morto foi velado neste recinto. O enterro saiu desta sala, desta Câmara.
– A prova do
falecimento é a certidão de óbito.
– Mas V.
Ex.ª segurou uma das alças do caixão!
– A prova do
falecimento é a certidão de óbito.
E não se foi adiante, enquanto o
suplente não apresentou a certidão de óbito. Todos os argumentos esbarravam
naquela frase irretorquível, perfeita, quase genial, que merecia ser gravada em
mármore no frontispício do DASP: “a prova do falecimento é a certidão de
óbito”. Só os medíocres, os anarquistas e os pobres-diabos, condenados a vida
inteira a ser suplicantes ou requerentes e que jamais serão Autoridade, não
percebem a profunda beleza dessa frase. Eles jamais compreenderão que uma pessoa
não pode existir sem certidão de nascimento nem pode deixar de existir sem
certidão de óbito. Que acima da vida e da morte, do bem e do mal, da felicidade
e da desgraça está esta coisa sacrossanta: o papel.
Eu também quero fazer uma frase.
Proponho que o DASP investigue o nome daquele antigo presidente da Câmara
Municipal de São João do Meriti e, no dia em que ele morrer, mande gravar em
seu túmulo (depois, naturalmente, de apresentada a certidão de óbito) esta
frase de suprema consagração burocrática: “Ele amou o papel”.
Rio, maio, 1968.
Conversinha Mineira
Fernando Sabino
– É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
– Sei dizer não senhor: não tomo café.
– Você é dono do café, não sabe dizer?
– Ninguém tem reclamado dele, não senhor.
– Então me dá café com leite, pão e manteiga.
– Café com leite só se for sem leite.
– Não tem leite?
– Hoje, não, senhor.
– Por que hoje não?
– Porque hoje o leiteiro não veio.
– Ontem ele veio?
– Ontem não.
– Quando é que ele vem?
– Tem dia certo não senhor. Às vezes
vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.
– Mas ali
fora está escrito "Leiteria"!
– Ah, isso está, sim senhor.
– Quando é que tem leite?
– Quando o leiteiro vem.
– Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
– O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?
– Ah, isso está, sim senhor.
– Quando é que tem leite?
– Quando o leiteiro vem.
– Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
– O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?
– Está bem, você ganhou. Me traz um
café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui
na sua cidade?
– Sei dizer
não senhor: eu não sou daqui.
– E há quanto tempo o senhor mora aqui?
– E há quanto tempo o senhor mora aqui?
– Vai para uns quinze anos. Isto é,
não posso agarantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos.
– Já dava
para saber como vai indo a situação, não acha?
– Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.
– Para que Partido?
– Para todos os Partidos, parece.
– Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
– Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...
– E o Prefeito?
– Que é que tem o Prefeito?
– Que tal o Prefeito daqui?
– O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.
– Que é que falam dele?
– Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
– Você, certamente, já tem candidato.
– Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
– Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.
– Para que Partido?
– Para todos os Partidos, parece.
– Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
– Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...
– E o Prefeito?
– Que é que tem o Prefeito?
– Que tal o Prefeito daqui?
– O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.
– Que é que falam dele?
– Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
– Você, certamente, já tem candidato.
– Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
– Mas tem ali o retrato de um
candidato dependurado na parede, que história é essa?
– Aonde, ali? Uê, gente:
penduraram isso aí...
(Texto extraído do livro "A Mulher do Vizinho",
Editora Sabiá - Rio
de Janeiro, 1962, pág. 144.)
Libório
Graciliano Ramos
Esta façanha pode ser atribuída a
Libório, personagem curiosa que provavelmente nunca existiu. E que, sem ter
existido, viajou muitos anos pelo Nordeste, realizando falcatruas com engenho,
de sorte que as vítimas ficavam sempre em situação ridícula.
No sertão bárbaro, onde se perdoa
facilmente o assassino, as ofensas à propriedade são punidas com rigor
excessivo, pois a fazenda é escassa e a população cresce demais. Contudo as
malandragens desse herói, produto de ficção popular e cabocla, provocam
simpatia e riso. Porque revelam inteligência e malícia, a reduzida inteligência
e a malícia grossa existentes no roceiro. E mostram que a pecúnia subtraída se
achava nas mãos de indivíduos incapazes, dignos de ser depenados.
Admitamos que o caso se tenha dado
com essa figura de sonho. Libório chegou a certo lugarejo onde ninguém o
conhecia. Ou, antes, onde o conheciam como sujeito morigerado, trabalhador e de
espírito curto. Cigano por natureza, adotava caracteres diferentes e
acomodava-se a vários ofícios. Dessa vez era agricultor - e honesto.
De saco no ombro e chiqueirador,
tangendo o comboio, parou diante dos armazéns, propondo um negócio mastigado,
cheio de curvas e mal-entendidos. Ao concluir a transação, depois de regateios
e embelecos infinitos, havia percorrido todas as ruas, estacionado em todos os
balcões, feito confidências a todos os caixeiros. Cercado por um rancho de
basbaques, descarregou os animais, questionou sobre o peso e o preço da
mercadoria, recebeu a paga, que foi contar vagarosamente na calçada. Sentou-se,
dividiu as cédulas, as pratas e os níqueis em lotes, resmungou, mexeu os dedos.
Amarrou tudo num lenço vermelho e meteu o lenço na capanga.
Em seguida pediu um conselho. Não
levava pelos caminhos aquela fortuna, que os arredores fervilhavam de
malfeitores. Queria que lhe apontassem um cristão decente para guardá-la. Ouviu
diversas opiniões e escolheu o vigário.
– Boa ideia. Vou conversar com ele
que é pessoa de Deus. Retirou-se, entrou na igreja, passou meia hora no
confessionário, narrando pecados.
Dois meses depois a casa do reverendo
se encheu de curiosos atraídos por gritos medonhos. Parecia que estavam matando
gente ali.
– Canalha!
Bandido! Vociferava num desespero a santa criatura.
– Vossemecê fala desse modo
porque tem poderes, governa a freguesia, replicava Libório calmo. E eu baixo a
cabeça, que sou pequeno. Mas desaforo não adianta. Escondeu o dinheiro no bolso
da batina e me ofereceu papel selado. Não aceitei. Havia de aceitar letra dum
homem que tem parte com Deus?
O eclesiástico soprava, inchava,
batia os queixos. Entonteceu, embatucou, foi-se avermelhando e acabou roxo de
indignação. Aquele descaramento assombrava-o. Quando se desengasgou, explodiu:
– O senhor
está doido.
– Estou no meu juízo perfeito,
murmurou o sem-vergonha. Vossemecê é que não tem memória. Estava rezando na
sacristia. Não se lembra? Escutou a minha história, combinou tudo muito
certinho e me abençoou. Foi ou não foi?
Os olhos do
padre arregalavam-se, corriam os circunstantes, procurando o cabo:
– Para que serve a polícia? Só me faltava
essa infelicidade, suspirou Libório com desalento. Bonita justiça. Tiram-me o
cobre e mandam-me para a cadeia. Além de queda, coice. Vida ruim.
Formaram-se dois grupos: um cobria o
matuto de injúrias; o outro, favorável a ele, não se animava a apoiá-lo
abertamente. No meio da balbúrdia choviam perguntas. E Libório se
desembaraçava, sem se exaltar:
– Ora testemunha! Ia lá procurar
testemunha para um trato desse, com um vivente que anda perto do céu?
Testemunha não tenho. Mas é como se tivesse. Todo mundo sabe que estou em cima
da verdade. Tive medo de ladrões e fiz tolice. Pensei que me benzia e quebrei
as ventas.
Esta segurança e o modo lorpa do
safado abalavam os intrusos. Não se capacitavam de que semelhante palerma
tivesse fabricado a enorme patifaria. As caras revelavam confusão, havia dúvida
e constrangimento na sala.
Nesse ponto um sujeito sabido teve a
idéia de engabelar o malandro. Oferecendo-lhe uma vantagem repentina, era
possível que ele, na surpresa, metesse o rabo na ratoeira, caísse em contradição. E
atirou-lhe de chofre:
– Seu Libório, o senhor está
enganado. Quem recebeu o dinheiro fui eu. Pode ir buscá-lo quando quiser.
– Sem dúvida, respondeu Libório. Eu
vou. Estando na sua mão, está bem guardado. Nunca desconfiei de você não. Agora
quero receber o que entreguei a seu vigário. Dê cá o meu conto de réis, seu
vigário, tenha paciência. Faça como o seu amigo, que deve e confessa diante do
povo, não esfola os pobres.
*****
(Viventes das
Alagoas, São Paulo, Martins, 1961)
Viventes das Alagoas
(1962) – Reunião de textos que misturam crônica, ensaio e ficção. Os textos
híbridos que compõem este livro fazem parte das colaborações de Graciliano para
a imprensa a partir de 1937. Considerado um subversivo pela ditadura do Estado
Novo, o velho Graça é preso em 1936 em Maceió, e transportado para o Rio de
Janeiro, onde é libertado apenas em 1937. Fixado na cidade desde então, o autor
de Caetés e Angústia passa a escrever artigos para revistas como O Cruzeiro,
Cultura Política e jornais como Diário de Notícias e A Tarde.
O livro traz ainda em suas páginas
finais, os Relatórios redigidos por Graciliano quando prefeito de Palmeira dos
Índios – AL. A linguagem burocrática e formal, característica desses
documentos, é substituída por notas irônicas e sarcásticas, além de rasgos
literários que simbolizam o ingresso de Graciliano na literatura.
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