sábado, 30 de janeiro de 2016

A Novata


Luis Fernando Veríssimoclique aqui


Sandrinha nunca esqueceu o seu primeiro dia na redação. Os olhares que recebeu quando se encaminhou para a mesa do editor. De curiosidade. De superioridade. Ou apenas de indiferença. Do editor não recebeu olhar algum.
– Quem é você? – ele perguntou, sem levantar acabeça.
Sandrinha se identificou.
– Ah, a novata – disse ele. – Você deve ser das boas.Recém-formada e já botaram a trabalhar comigo. Você sabe o que a espera?
– Bem, eu...
– Esqueça tudo o que aprendeu na escola. Isto aqui é alinha de frente do jornalismo moderno. Aqui você tem que ter coragem. Garra. Instinto. Você acha que tem tudo isso?
– Acho que sim.
Ele a olhou pela primeira vez. Seu sorriso era cruel.
– É o que veremos – disse. – Já vi muita gente quebrar a cara aqui. Desistir e pedir transferência para a crônica policial. É preciso ter estômago. Você tem estômago?
– Tenho.
Ele gritou:
– Dalva!
Uma mulher aproximou-se da mesa. Tinha a cara de quem já viu tudo na vida e gostou de muito pouco. O editor perguntou:
– Você já pegou o Rudi?
– Estou indo agora.
– Leve ela.
Dalva olhou para Sandra como se tivesse acabado de tirá-la do nariz. Voltou a olhar para o editor.
– Não sei, chefe. O Rudi...
– Quero ver do que ela é feita.
– Está bem.
Antes de saírem, Dalva perguntou para Sandra:
– Que equipamento você usa?
Sandra mostrou o que tinha dentro da bolsa. Dalva mostrou o seu.
– Certo. Vamos sincronizar gravadores. Testando. Um, dois, três...
As duas aproximaram-se da porta do apartamento de Rudi. Antes de bater na porta, a veterana avisou:
– Chegue para trás.
De dentro do apartamento veio uma voz assustada.
– Quem é?
– Abra!
A porta entreabriu-se. Rudi espiou para fora. Dalva empurrou a porta ao mesmo tempo que tirava o gravador da bolsa. Sandra a seguiu para dentro do apartamento. Rudi recuou.
– Isto é invasão de privacidade! – gritou.
– Quieto! Prepare-se para falar, Rudi. E lembre-se: tudo que você disser pode ser usado na edição de domingo.
– Não vou dizer nada.
Dalva forçou-o a sentar. O gravador já estava a milímetros da sua boca.
– Ah, vai - disse Dalva. – Vai dizer tudo. Loção de barba!
– Ahn... "Animal", de Givenchy!
– Cuecas justas ou tipo short?
– Justas.
– De que loja?
– Não tenho uma loja favorita.
– Pense melhor, Rudi.
– Está bem. A "Papoulas".
– Sua cor favorita.
– Verde. Não! Azul!
– Vamos, Rudi. É verde ou é azul?
– Azul, azul!
– Quem você levaria para uma ilha deserta?
– Não sei. Me deixem pensar.
– “Pensar”, Rudi? “Pensar”?! Você acha que está respondendo para o suplemento cultural? Vamos, quem você levaria para uma ilha deserta?
Dalva registrou com surpresa que Sandrinha é que fizera a pergunta Rudi respondeu.
– A minha mãe. Não. A Malu Mader.
– Qual delas?
– Não pode ser as duas?
– Você sabe que não, Rudi. Estamos perdendo tempo. Quem?
– A Malu Mader.
– Pasta de dente.
– Crest.
– Seu livro de cabeceira.
– Kalil Gibran.
– Maior emoção.
– Foi, foi... Quando minha cadela “Tutsi” teve filhotinhos.
– Prato preferido?
– Não sei. Não sei!
– Sabe sim.
– Picadinho de carne com ovo.
– Sua filosofia.
– Viver e deixar viver.
– Se você não fosse você, quem gostaria de ser?
– O... o...
– Estamos esperando!
– O Gerald Thomas ou o padre Marcelo Rossi!
– Qual dos dois?
– Fale!
Agora Sandrinha também tinha seu microfone perto da boca de Rudi.
– O padre Marcelo Rossi!
Rudi começou a soluçar. As duas se olharam. Dalva permitiu-se um sorriso.
– Você é boa, novata. Acho que vai se dar bem neste trabalho...
– Obrigada.
Mas Sandra não tinha terminado.
– Não pense que acabou ainda, Rudi. Sabonete!

(Luís Fernando Veríssimo. 
In: Comédias para se ler na escola, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.)


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