Esta é uma
história de vontade.
Numa fazenda de gado à beira do Rio
São Francisco trabalhava um casal de escravos: Francisco e Catirina. Vai que um
dia Catirina ficou grávida. Numa noite em que a lua prateava o pasto, Catirina
gemeu para o marido:
– Estou com
desejo de língua de boi.
– Vontade de grávida é ordem – disse
Francisco. – Mas os bois não são nossos. Você sabe, mulher.
Naquela mesma hora, não é que apareceu
um boi enorme, branco e gordo? De quem é, de quem não é... Francisco entrou
para dormir, mas Catirina foi atrás. Tinha um olhar comprido que dava pena:
– Quem me
dera uma língua de boi...
Francisco saiu e matou o coitado.
Cozinhou a língua e pôs fim ao desejo da mulher. Chamou depois os vizinhos e
repartiu o resto:
– A pá é pro Itamá. A peitaça pro Seu
Vilaça. Pro meu sobrinho Antonil, o costaço. Pro Seu Donato, o pernil...
Só sobraram
os chifres e o rabo, que ninguém quis.
Daí a dias, o dono da Fazenda cismou de ver o rebanho:
– Cadê o boizão, aquele que eu trouxe do Egito?
O feitor procurou pela fazenda inteira. Deu a notícia:
Daí a dias, o dono da Fazenda cismou de ver o rebanho:
– Cadê o boizão, aquele que eu trouxe do Egito?
O feitor procurou pela fazenda inteira. Deu a notícia:
– Sumiu.
– Sumiu, como?
– Sumiu, como?
Um escravo que tinha visto Francisco
fazer a repartição, e não tinha ganhado nada, contou:
– Vi o Chico matando ele...
– Vi o Chico matando ele...
O amo caiu no choro. Era um homem feroz,
mas triste. Socava a parede:
– O meu boi Barroso que veio do Egito
em caravela!...
Dava dó.
– Vou consolar o amo – disse
Francisco, quando soube.
– Está louco? – falou Catirina. – É
melhor fugir.
O pobre do amo olhava comprido o que
restava do boi: o esqueleto com rabo e os chifres.
Mandou buscar curandeiros em todas as
partes.
O primeiro olhou, olhou. – Tá morto.
E deixou uma lista de remédios. – Com três dias arriba.
De fato. No terceiro dia o boi deu um
pum. Foi só.
Rezaram, recitaram mantras, cumpriram
penitências. Nada. Dessa vez nem um traque.
Alguém lembrou de um pajé. Chegou com
ervas e uma coleção de sapos secos. Acendeu um cachimbo e baforou os restos do
boi. Também nada.
– O meu boi morreu!... – chorava o
amo. – Que será de mim?
– Manda buscar outro – sugeria o
feitor –, lá no Piauí.
Ninguém queria entender o sofrimento
dum homem tão rico.
Enquanto isso, Francisco e Catirina
estavam escondidos no município de Ão. Fica pra lá de Montes Claros e acabaram
sabendo que um fazendeiro assim assim morria de paixão por um boi assassinado
etc.
– Se eu soubesse – suspirou Catirina
–, não te pedia língua de boi aquela noite.
– E seu soubesse – falou Francisco –,
não te fazia a vontade.
O menino, que tinha nascido e já era
grandinho, chamado Mateus, estava ouvindo a conversa.
– Meu pai, minha mãe, eu resolvo o
caso.
Chegaram na fazenda. Francisco e
Catirina ainda com medo do castigo. O amo, porém, só tinha olhos pra chorar. Os
escravos há muito tempo não faziam mais nada. As porteiras estavam escancaradas
e um vento frio fazia redemoinho na própria sala da casa-grande.
Lá estavam os restos do boi no
terreiro: o esqueleto com rabo e os chifres. Mateus levantou o rabo do boi e
espiou lá dentro. Ninguém sabe o que ele viu. Assoprou três vezes.
O boi viveu. Saiu chifrando quem
estava perto. O amo não cabia em si de alegre. Pulava e abraçava os escravos.
Perdoou Francisco e Catirina.
Esse foi o primeiro bumba-meu-boi do mundo.
Mais tarde, pra ficar mais bonito, inventaram as criaturas fantásticas: o
Caipora, o Bicho Folharal, o Jaraguá e a Bernúncia. E outros animais, além do
boi: a Burrinha, a Ema, o Cavalo-Marinho, o Urso, o Jacaré, o Urubu e muitos
outros.
Joel Rufino dos Santos
Joel Rufino dos Santos (Rio de
Janeiro, 1941 – Rio de Janeiro, 4 de setembro de 2015) foi um historiador,
professor e escritor brasileiro, tendo sido um dos nomes de referência sobre o
estudo da cultura africana no país.
Joel continuará vivo no coração e
na memória de todos que com ele conviveram, ou o conheceram através da leitura
de seus livros, e reconhecem o valor de uma vida marcada pela luta por justiça
social, pelo fim dos preconceitos e pela defesa da cultura popular
brasileira.
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