quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Bumba-meu-boi



Esta é uma história de vontade.
Numa fazenda de gado à beira do Rio São Francisco trabalhava um casal de escravos: Francisco e Catirina. Vai que um dia Catirina ficou grávida. Numa noite em que a lua prateava o pasto, Catirina gemeu para o marido:
– Estou com desejo de língua de boi.
– Vontade de grávida é ordem – disse Francisco. – Mas os bois não são nossos. Você sabe, mulher.
Naquela mesma hora, não é que apareceu um boi enorme, branco e gordo? De quem é, de quem não é... Francisco entrou para dormir, mas Catirina foi atrás. Tinha um olhar comprido que dava pena:
– Quem me dera uma língua de boi...
Francisco saiu e matou o coitado. Cozinhou a língua e pôs fim ao desejo da mulher. Chamou depois os vizinhos e repartiu o resto:
– A pá é pro Itamá. A peitaça pro Seu Vilaça. Pro meu sobrinho Antonil, o costaço. Pro Seu Donato, o pernil...
Só sobraram os chifres e o rabo, que ninguém quis.
Daí a dias, o dono da Fazenda cismou de ver o rebanho:
– Cadê o boizão, aquele que eu trouxe do Egito?
O feitor procurou pela fazenda inteira. Deu a notícia:
– Sumiu.
– Sumiu, como?
Um escravo que tinha visto Francisco fazer a repartição, e não tinha ganhado nada, contou:
– Vi o Chico matando ele...
O amo caiu no choro. Era um homem feroz, mas triste. Socava a parede:
– O meu boi Barroso que veio do Egito em caravela!...
Dava dó.
– Vou consolar o amo – disse Francisco, quando soube.
– Está louco? – falou Catirina. – É melhor fugir.
O pobre do amo olhava comprido o que restava do boi: o esqueleto com rabo e os chifres.
Mandou buscar curandeiros em todas as partes.
O primeiro olhou, olhou. – Tá morto. E deixou uma lista de remédios. – Com três dias arriba.
De fato. No terceiro dia o boi deu um pum. Foi só.
Rezaram, recitaram mantras, cumpriram penitências. Nada. Dessa vez nem um traque.
Alguém lembrou de um pajé. Chegou com ervas e uma coleção de sapos secos. Acendeu um cachimbo e baforou os restos do boi. Também nada.
– O meu boi morreu!... – chorava o amo. – Que será de mim?
– Manda buscar outro – sugeria o feitor –, lá no Piauí.
Ninguém queria entender o sofrimento dum homem tão rico.

Enquanto isso, Francisco e Catirina estavam escondidos no município de Ão. Fica pra lá de Montes Claros e acabaram sabendo que um fazendeiro assim assim morria de paixão por um boi assassinado etc.

– Se eu soubesse – suspirou Catirina –, não te pedia língua de boi aquela noite.
– E seu soubesse – falou Francisco –, não te fazia a vontade.
O menino, que tinha nascido e já era grandinho, chamado Mateus, estava ouvindo a conversa.
– Meu pai, minha mãe, eu resolvo o caso.

Chegaram na fazenda. Francisco e Catirina ainda com medo do castigo. O amo, porém, só tinha olhos pra chorar. Os escravos há muito tempo não faziam mais nada. As porteiras estavam escancaradas e um vento frio fazia redemoinho na própria sala da casa-grande.

Lá estavam os restos do boi no terreiro: o esqueleto com rabo e os chifres. Mateus levantou o rabo do boi e espiou lá dentro. Ninguém sabe o que ele viu. Assoprou três vezes.
O boi viveu. Saiu chifrando quem estava perto. O amo não cabia em si de alegre. Pulava e abraçava os escravos. Perdoou Francisco e Catirina.

Esse foi o primeiro bumba-meu-boi do mundo. Mais tarde, pra ficar mais bonito, inventaram as criaturas fantásticas: o Caipora, o Bicho Folharal, o Jaraguá e a Bernúncia. E outros animais, além do boi: a Burrinha, a Ema, o Cavalo-Marinho, o Urso, o Jacaré, o Urubu e muitos outros.




Joel Rufino dos Santos

Joel Rufino dos Santos (Rio de Janeiro, 1941 – Rio de Janeiro, 4 de setembro de 2015) foi um historiador, professor e escritor brasileiro, tendo sido um dos nomes de referência sobre o estudo da cultura africana no país.

Joel continuará vivo no coração e na memória de todos que com ele conviveram, ou o conheceram através da leitura de seus livros, e reconhecem o valor de uma vida marcada pela luta por justiça social, pelo fim dos preconceitos  e pela defesa da cultura popular brasileira.



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