sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Curiosa coincidência



Quintana e Galeano compartilharam, em épocas diferentes, a mesma fantasia.

Mario Quintana, em seu Sapato Florido, publicado em livro em 1948 (Editora Globo), conta a fábula do homem que, com pena do peixinho que pescara, “retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho”. Depois, levou-o para casa “no bolso traseiro das calças”. Tornaram-se amigos inseparáveis. “Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote que nem um cachorrinho”, descreve o poeta. Com o passar do tempo, o pescador achou que não tinha o direito de guardar aquele pequeno animal consigo. Certo dia – resumindo a história –, passeando à margem do rio, mesmo chorando, atirou o peixinho na água. “E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando… até que o peixinho morreu afogado…”.


Mais de 40 anos depois, o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (falecido no ano passado), em O Livro dos Abraços (tradução L&PM, 1991), conta o causo do pequeno bagre que decidiu sair de um arroio e seguir o peão Mellado Iturria. Os dois se tornaram amigos inseparáveis. “Desde o amanhecer o bagre o acompanhava para ordenhar e percorrer o campo. Ao cair da tarde, tomavam chimarrão juntos; e o bagre escutava suas confidências”, relata o autor. Até que, “numa certa manhã de muito calor, quando as lagartixas andavam de sombrinha e o bagrezinho se abanava furiosamente com as barbatanas”, Mellado teve a ideia fatal: – Vamos tomar banho no arroio – propôs. “Foram os dois. E o bagre se afogou.”

(Do Almanaque Gaúcho de Zero Hora)

Continua...

Velha História

Mário Quintana


Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então, ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelo café. Como era tocante vê-los no "17"! o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando do peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...

Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:

“Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!...”

Dito isso, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n’água. E a água fez redemoinho, que foi depois serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado...

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Causos/1

Eduardo Galeano


Nas fogueiras de Paysandu, Mellado Iturria conta causos. Conta acontecidos. Os acontecidos aconteceram alguma vez, ou quase aconteceram, ou não aconteceram nunca, mas têm uma coisa de bom: acontecem cada vez que são contados. 

Este é o triste causo do bagrezinho do arroio Negro.

Tinha bigodes de arame farpado, era vesgo e de olhos saltados. Nunca Mellado tinha visto um peixe tão feio. O bagre vinha grudado em seus calcanhares desde a beira do arroio, e Mellado não conseguia espantá-lo. Quando chegou no casario, com o bagre feito sombra, já tinha se resignado.

Com o tempo, foi sentindo carinho pelo peixe. Mellado nunca tinha tido um amigo sem pernas. Desde o amanhecer o bagre o acompanhava para ordenhar e percorrer campo. Ao cair da tarde, tomavam chimarrão juntos; e o bagre escutava suas confidencias.

Os cachorros, enciumados, olhavam o bagre com rancor; a cozinheira, com más intenções. Mellado pensou em dar um nome para o peixe, para ter como chamá-lo e para fazer-se respeitar, mas não conhecia nenhum nome de peixe, e batizá-lo de Sinforoso ou Hermenegildo poderia desagradar a Deus.

Estava sempre de olho nele. O bagre tinha uma notória tendência às diabruras. Aproveitava qualquer descuido e ia espantar as galinhas ou provocar os cachorros:

– Comporte-se – dizia Mellado ao bagre.

Certa manhã de muito calor, quando as lagartixas andavam de sombrinha e o bagrezinho se abanava furiosamente com as barbatanas, Mellado teve a ideia fatal:

– Vamos tomar banho no arrolo – propôs. Foram, os dois.

E o bagre se afogou.

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