→ Frei Bastos* adorava escandalizar os que o ouviam no púlpito. Certa
vez, ao iniciar seu sermão, bradou:
– Maldito seja o Pai! Maldito seja o
Filho! Maldito seja o Espírito Santo... bradam os demônios do inferno!
*****
→ De outra feita, fazendo o sermão em louvor
de São Benedito, dirigiu-se ao santo no seguinte tom:
– Negro! Bêbado! Ladrão!
E quando todos saltavam em seus bancos,
apavorados, continuou, eloquentemente:
–
Sim! Negro, porque o Demônio escureceu-lhe a pele, já que não podia
escurecer-lhe a alma! Bêbado, sim! Porque a graça divina o trazia em perpétua
ebriedade! E ladrão! Ladrão, realmente, pois roubava o Menino dos braços de sua
mãe amantíssima!
*****
→ Conta-se, ainda, que na cidade de Salvador
costumavam frequentar a missa da qual frei Bastos era incumbido do sermão uma
senhora e suas duas filhas, da mais alta sociedade, riquíssimas, mas muito
feias. Além disso, orgulhosas, só assistiam aos serviços divinos do alto das
tribunas reservadas. E nada as suscetibilizava mais do que qualquer alusão, por
mais velada que fosse, à sua proverbial fealdade.
Pois bem: frei Bastos, em certo domingo
festivo, com a igreja transbordante de fiéis, sobe ao púlpito e, erguendo os
olhos, depara com as três feiosas, logo atrás da balaustrada da tribuna
principal.
Erguendo os olhos, ergue também os braços
e, as pupilas fixas nas caras medonhas das ricas damas, exclama a pleno
pulmões:
– Como são feias, Senhor! Como são feias!
Diante daquilo a assistência em peso
torceu-se em seus lugares e todos os olhos levantaram-se para tribuna solene.
As damas visadas entreolharam-se, aflitas.
E frei Bastos, imperturbável, os olhos
sempre erguidos, os braços abertos:
– Como são horrorosas!
Já se erguiam as damas para fugirem ao
escândalo, quando o padre, descendo olhos e braços, continuou, com toda a
naturalidade:
– Sim, como são horrorosas... as almas em
pecado mortal!
*****
*Bastos Baraúna (Frei Francisco Xavier de Santa Rita – 1785-1846) –
Pregador franciscano nascido na Bahia, célebre pelo seu talento e sua vida
desordenada.
→ Na Bahia, em cena aberta,
transcorria a festa da comemoração do decenário de Castro Alves.
Rui Barbosa, já então orador
consagrado, fizera o elogio do poeta. É quando surge no palco o médico Manoel
Vitorino, para recitar o famoso Navio
Negreiro.
Tudo vai muito bem, e palmas fervorosas
interrompem o declamador nos trechos mais comoventes. E vem a passagem
conhecidíssima:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Mais adiante, a
exortação:
Mas é infâmia demais! ... da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
E num apelo
dramático:
Andrada! Arranca este pendão dos ares!
Colombo!...
Nesse momento, com a plateia imersa no
mais profundo silêncio, pendente dos lábios do declamador inflamado, o final da
última frase, lá do alto, da galeria repleta, uma vozinha fina, humilde, de
moleque baiano, responde, como se tivesse sido chamado:
– Inhô?...
– ...fecha a porta dos teus mares!
– Sim sinhô... –
respondeu a mesma voz humilde.
E lá se foi toda a respeitabilidade da
festa de comemoração, abafada pela mais monumental gargalhada coletiva que já
ressoara naquela casa de espetáculos.
O chapéu velho
→ Conta Afrânio Peixoto que Raimundo Correia, quando ainda
estudante, mandou fazer roupa nova. Os amigos exigiram que comprasse também um
chapéu, para substituir o velho penante que usava havia séculos.
Acompanharam-no à chapelaria e ali Raimundo escolheu o chapéu que melhor diria
com o terno novo, peça elegante, naturalmente.
No dia seguinte, eis que entra Raimundo na
faculdade envergando a roupa nova, mas trazendo à cabeça o velho chapéu de
todos os dias. Espanto dos colegas! Distração? Roubo do chapéu? E o poeta
explicou: estava pronto, ia sair, todo bem-vestido, o chapéu pendurado no
cabide, desbotado, amolgado, fita esgarçada com tamanho ar de humildade e
abandono que o coração do jovem se confrangeu. Parecia ouvi-lo dizer:
“É assim... Fui teu companheiro de todos os
momentos, tomei garoa e sol, pensei e sofri contigo, meses a fio. Agora, no teu
momento de glória, metido em bela roupa nova, quando vais chamar a atenção pela
elegância, levas o outro, o novo. Que é ele, para ti? Um desconhecido, um
estranho... Compraste-o ontem e já me abandonas por ele...”
E Raimundo não resistiu. Trocou
de chapéu. Levando o velho mais uma vez, a última vez, em companhia da roupa
nova, para que ele compartilhasse do seu dia de suprema elegância.
(Do livro: “Grandes
Anedotas da História”, de Nair Lacerda)
Extraordinários contos.
ResponderExcluirMeu livro de cabeceira. Ótima leitura
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