Millôr Fernandes
Há exatamente 10 anos (1990)*
morria Rubem Braga, o sólido, solitário e casmurro capitão de Ipanema, o cantor
melancólico de Cachoeiro de Itapemirim, o sabiá da crônica. Desde moço
autoproclamado o velho Braga e, imitando Villon, envelhecido, envilecido. No
dia de sua morte, escrevi:
Conheci Rubem Braga a vida inteira.
Li Rubem Braga a vida inteira. Foi, sem dúvida, o ser humano que mais admirei a
vida inteira. Ontem, quando vinha de carro pra cá, pro meu estúdio, parado no
sinal da Praça General Osório, olhei, como todos os dias, pras janelas do seu
terraço cheio de árvores. Sua cobertura agrária, lá no alto, pregada ao morro
do Cantagalo. Ao contrário de todos os dias, as janelas estavam fechadas. Pra
ele, pra mim, pra sempre. Nunca mais voltaremos lá.
*Crônica escrita em 2000.
A última vez que vi Rubem Braga
Esta foi a última vez que vi Rubem
Braga. Explico: eu tenho um estúdio de trabalho num extremo da Praça General
Osório (Gosório) em
Ipanema. Rubem Braga mora num edifício no outro extremo. Meu
estúdio é pequeno, uma cobertura composta apenas de uma sala de cem metros
quadrados, jardins, oito quartos, três banheiros, instalações para a criadagem
e dependências de hóspedes. Já a cobertura de Rubem Braga, embora não seja
também uma residência de luxo, além de instalações mais ou menos semelhantes às
minhas, tem ainda um viveiro para mil e quinhentos pássaros (entre os quais um
sabiá-quincas, raríssimo, e uma águia do nordeste, única), horta, jardins e uma
plantação de cana de dar inveja a Fidel Castro. Rubem tem mais um solário para
as moças, uma pequena piscina (não chega a ser olímpica, mas o técnico Feola de
vez em quando treina lá.) e um play-ground para crianças (onde ele prende todas
as dos vizinhos, quando estão enchendo).
Depois de descritas as duas moradias
com o fito modesto e visível de enfurecer o proletariado intelectual de
Ipanema, passo ao histórico de minhas relações de vizinhança com Rubem Braga. Quando
eu fui trabalhar num extremo da praça ele já morava no outro. Ipanema era
aprazível, tinha um gabarito de quatro andares (seis com pilotis e coberturas)
e os edifícios do Rubem e o meu, por sua localização especial, eram dos pouco
mais elevados. Do meu eu avistava Ipanema e o mundo. Inclusive a Lagoa Rodrigo
de Freitas, o mar, o Corcovado e o Pão de Açúcar e, um pouco mais longe, Paris
e Nova York. O Rubem, do seu, dominava urbi et orbi e, mais importante do que
tudo, me via! Todas as manhãs nos saudávamos, efusivamente. A distância não
permitia troca de palavras, mas trocávamos sinais semafóricos, nos quais,
diga-se de passagem, Rubem é um mestre. ''B-o-m-d-i-a!'', sinalizava eu com
esforço, já que meu semaforismo é fraco. ''B/o/m/ d/i/a/ m/e/u/ c/a/r/o/
c/o/l/e/g/a/ d/e/ p/r/a/ç/a /e /d/e/ m/a/d/r/u/g/a /r/.!, respondia Rubem,
muito mais ágil nos braços do que na glote e na epliglote.
E assim permanecemos anos, trocando
cumprimentos fraternais e constantes. Mas o que é bom dura pouco, como dizia o
outro, e veio o governo Carlos Lacerda, que aprovou a ideia de mudar o gabarito
de Ipanema transformando-se o bairro numa favela igual a Copacabana. O
resultado aí está. A exploração imobiliária, liberada para todas as cobiças e
todas as monstruosidades arquitetônicas, começou a rodear o edifício de Rubem
Braga com massas gigantescas de concreto e aço, construções as mais estranhas,
sem ar nem luz - atentados que ninguém parece ver, e contra os quais,
aparentemente, ninguém pode. E, pouco a pouco, Rubem Braga foi desaparecendo de
minha vista, tragado pela Nova York, oculto pela Canadá, emparedado pela
Sergen, sepultado pela Gomes de Almeida Fernandes. Depois de batida esta foto
os operários começaram a levantar mais um andar do edifício que aparece em
segundo plano. Foi a ultima vez que vi Rubem Braga.
*****
Quem foi Rubem Braga em 20 pequenas
lições
01 – EXCEÇÃO
Há mulheres tão lindas e
estranhas que só acontecem pela madrugada em um grande aeroporto internacional.
02 – SILVA
Algumas pessoas importantes
usaram e usam o nosso nome. É por engano. Os Silvas somos nós. Não temos a
mínima importância. /A família Silva e a família de Tal são a mesma família. /
Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva. / Nossa
família faz pedra, faz telhas, laça os bois, levanta os prédios, conduz os
bondes, o tapete do circo, enche os porões dos navios, dinheiro dos bancos, faz
os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca:
faz tudo.
03 – CALÚNIA
Falar do inferno, por exemplo, é
mau. Dante e outros espalharam muitas notícias falsas a respeito, e a pior
delas é que para lá vão os culpados.
04 – DEFINIÇÃO
Entendo por vida o fato de um
homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro.
05 – ATRAÇÃO
Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia Vermelha,
mas sempre fui simpatizante.
06 – DESENCONTRO
Quando vier a grande hora do
nosso destino nós teremos saído há uns cinco minutos para tomar café. Vamos.
Vamos tomar um cafezinho.
07 – DISCUSSÃO
Discutir com adjetivos é muito fácil.
08 – EGOCÊNTRICA
Ligue para minha casa, pergunte se eu estou, se não estiver
diga que já vou, e se estiver diga para eu não sair.
09 – ESCOLHA
Devo confessar preliminarmente
que, entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho. (Motivou o
rompimento - empregado e patrão - entre Rubem e Chatô. O conde era o
multimilionário Matarazzo)
10 – FRUSTRAÇÃO
Não sou cangaceiro por motivos geográficos e mesmo por causa
do meu reumatismo.
11 – FÉ
Glória ao padeiro, que acredita no pão.
12 – INTIMIDADE
A gente sempre sabe, de um casal
de amigos, um pouco mais do que cada um dos membros do casal imagina.
13 – MADRUGADA PAULISTANA
Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para
ser boêmio.
14 – OUTSIDERS
Eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários
civis.
15 – POLIGLOTA
Falo francês como quem cospe pedras.
16 – RISCO
Sempre corro o perigo de
cumprimentar efusivamente, quando encontro, de súbito, um desafeto qualquer:
Antes de me dar conta de quem se trata, eu o saúdo porque é uma cara conhecida.
17 – TESE
Filosofar é, antes de tudo, cuspir.
18 – TENTAÇÃO
Nesta varanda alta, sobre os
veículos e os transeuntes matinais, tenho a vontade insensata de fazer um
discurso.
19 – CONTÁGIO
Devia ser com certeza uma dessas
doenças que a gente adquire lendo Seleções e tem um nome tão interessante que
dá vontade de mandar botar no cartão de visitas.
20 – DIPLOMACIA
Tomei o partido de falar pouco,
beber muito e exprimir os tradicionais laços de amizade que ligam Cachoeiro de
Itapemirim à Casa Branca.
Mar
Por Rubem Braga
A primeira vez que vi o mar eu
não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos
viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha
visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que
é menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia
de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava
pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia
e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava
ainda mais a imagem. Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios
no meio, às vezes uma porção de espuma, tudo isso muito salgado, azul, com
ventos.
Fomos ver o mar. Era de manhã,
fazia sol. De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de largo, de
inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós
todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar.
As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes
cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração
apressada, vendo o mar...
Depois que o mar entrou na minha
infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, seus
ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza.
Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal,
chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da
canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer - como aquela criança de
franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mão... Um
rapaz de 14 ou 15 anos que nas noites de lua-cheia, quando a maré baixa e
descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa
roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e
dava boa noite...
Que andava longas horas pela
praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os
pescadores que consertavam as redes. um menino que levava na canoa um pedaço de
pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de
coisas que não sabia dizer - que ainda não sabe dizer.
Mar maior que a terra, mar do
primeiro amor, mar da primeira viagem, mar da gritaria dos meninos, mar dos
pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mas das festas, mar
terrível daquela morte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do
alto mar da praia, mar de pedra e mar do mangue... A primeira vez que sai
sozinho numa canoa, parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e
perigo, senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A
primeira vez que estive quase morrendo afogado quando a água batia na minha cara
e a corrente de “arrieiro” me puxava para fora, não gritei nem fiz gestos de
socorro, lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e oleoso,
lambendo o batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das
pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a
vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem
finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso
mar fabricando um homem...
Este homem esqueceu, grande mar,
muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora
chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso,
incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se
gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa, mas há muita coisa que ele
aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele,
no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um
dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem
remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa,
perante as grandes ondas que arrebentavam - um punhado de meninos vendo pela
prima vez o mar...
Do livro “O Morro do
isolamento”. São Paulo, Editora Brasiliense, 1944.
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