quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Rubem Braga aos 90 anos


Millôr Fernandes

Há exatamente 10 anos (1990)* morria Rubem Braga, o sólido, solitário e casmurro capitão de Ipanema, o cantor melancólico de Cachoeiro de Itapemirim, o sabiá da crônica. Desde moço autoproclamado o velho Braga e, imitando Villon, envelhecido, envilecido. No dia de sua morte, escrevi:

Conheci Rubem Braga a vida inteira. Li Rubem Braga a vida inteira. Foi, sem dúvida, o ser humano que mais admirei a vida inteira. Ontem, quando vinha de carro pra cá, pro meu estúdio, parado no sinal da Praça General Osório, olhei, como todos os dias, pras janelas do seu terraço cheio de árvores. Sua cobertura agrária, lá no alto, pregada ao morro do Cantagalo. Ao contrário de todos os dias, as janelas estavam fechadas. Pra ele, pra mim, pra sempre. Nunca mais voltaremos lá.

*Crônica escrita em 2000.

A última vez que vi Rubem Braga


Esta foi a última vez que vi Rubem Braga. Explico: eu tenho um estúdio de trabalho num extremo da Praça General Osório (Gosório) em Ipanema. Rubem Braga mora num edifício no outro extremo. Meu estúdio é pequeno, uma cobertura composta apenas de uma sala de cem metros quadrados, jardins, oito quartos, três banheiros, instalações para a criadagem e dependências de hóspedes. Já a cobertura de Rubem Braga, embora não seja também uma residência de luxo, além de instalações mais ou menos semelhantes às minhas, tem ainda um viveiro para mil e quinhentos pássaros (entre os quais um sabiá-quincas, raríssimo, e uma águia do nordeste, única), horta, jardins e uma plantação de cana de dar inveja a Fidel Castro. Rubem tem mais um solário para as moças, uma pequena piscina (não chega a ser olímpica, mas o técnico Feola de vez em quando treina lá.) e um play-ground para crianças (onde ele prende todas as dos vizinhos, quando estão enchendo).

Depois de descritas as duas moradias com o fito modesto e visível de enfurecer o proletariado intelectual de Ipanema, passo ao histórico de minhas relações de vizinhança com Rubem Braga. Quando eu fui trabalhar num extremo da praça ele já morava no outro. Ipanema era aprazível, tinha um gabarito de quatro andares (seis com pilotis e coberturas) e os edifícios do Rubem e o meu, por sua localização especial, eram dos pouco mais elevados. Do meu eu avistava Ipanema e o mundo. Inclusive a Lagoa Rodrigo de Freitas, o mar, o Corcovado e o Pão de Açúcar e, um pouco mais longe, Paris e Nova York. O Rubem, do seu, dominava urbi et orbi e, mais importante do que tudo, me via! Todas as manhãs nos saudávamos, efusivamente. A distância não permitia troca de palavras, mas trocávamos sinais semafóricos, nos quais, diga-se de passagem, Rubem é um mestre. ''B-o-m-d-i-a!'', sinalizava eu com esforço, já que meu semaforismo é fraco. ''B/o/m/ d/i/a/ m/e/u/ c/a/r/o/ c/o/l/e/g/a/ d/e/ p/r/a/ç/a /e /d/e/ m/a/d/r/u/g/a /r/.!, respondia Rubem, muito mais ágil nos braços do que na glote e na epliglote.

E assim permanecemos anos, trocando cumprimentos fraternais e constantes. Mas o que é bom dura pouco, como dizia o outro, e veio o governo Carlos Lacerda, que aprovou a ideia de mudar o gabarito de Ipanema transformando-se o bairro numa favela igual a Copacabana. O resultado aí está. A exploração imobiliária, liberada para todas as cobiças e todas as monstruosidades arquitetônicas, começou a rodear o edifício de Rubem Braga com massas gigantescas de concreto e aço, construções as mais estranhas, sem ar nem luz - atentados que ninguém parece ver, e contra os quais, aparentemente, ninguém pode. E, pouco a pouco, Rubem Braga foi desaparecendo de minha vista, tragado pela Nova York, oculto pela Canadá, emparedado pela Sergen, sepultado pela Gomes de Almeida Fernandes. Depois de batida esta foto os operários começaram a levantar mais um andar do edifício que aparece em segundo plano. Foi a ultima vez que vi Rubem Braga.

*****

Quem foi Rubem Braga em 20 pequenas lições


01 – EXCEÇÃO

Há mulheres tão lindas e estranhas que só acontecem pela madrugada em um grande aeroporto internacional.

02 – SILVA

Algumas pessoas importantes usaram e usam o nosso nome. É por engano. Os Silvas somos nós. Não temos a mínima importância. /A família Silva e a família de Tal são a mesma família. / Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva. / Nossa família faz pedra, faz telhas, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, o tapete do circo, enche os porões dos navios, dinheiro dos bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo.

03 – CALÚNIA

Falar do inferno, por exemplo, é mau. Dante e outros espalharam muitas notícias falsas a respeito, e a pior delas é que para lá vão os culpados.

04 – DEFINIÇÃO

Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro.

05 – ATRAÇÃO

Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia Vermelha, mas sempre fui simpatizante.

06 – DESENCONTRO

Quando vier a grande hora do nosso destino nós teremos saído há uns cinco minutos para tomar café. Vamos. Vamos tomar um cafezinho.

07 – DISCUSSÃO

Discutir com adjetivos é muito fácil.

08 – EGOCÊNTRICA

Ligue para minha casa, pergunte se eu estou, se não estiver diga que já vou, e se estiver diga para eu não sair.

09 – ESCOLHA

Devo confessar preliminarmente que, entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho. (Motivou o rompimento - empregado e patrão - entre Rubem e Chatô. O conde era o multimilionário Matarazzo)

10 – FRUSTRAÇÃO

Não sou cangaceiro por motivos geográficos e mesmo por causa do meu reumatismo.

11 – FÉ

Glória ao padeiro, que acredita no pão.

12 – INTIMIDADE

A gente sempre sabe, de um casal de amigos, um pouco mais do que cada um dos membros do casal imagina.

13 – MADRUGADA PAULISTANA

Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para ser boêmio.

14 – OUTSIDERS

Eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis.

15 – POLIGLOTA

Falo francês como quem cospe pedras.

16 – RISCO

Sempre corro o perigo de cumprimentar efusivamente, quando encontro, de súbito, um desafeto qualquer: Antes de me dar conta de quem se trata, eu o saúdo porque é uma cara conhecida.

17 – TESE

Filosofar é, antes de tudo, cuspir.

18 – TENTAÇÃO

Nesta varanda alta, sobre os veículos e os transeuntes matinais, tenho a vontade insensata de fazer um discurso.

19 – CONTÁGIO

Devia ser com certeza uma dessas doenças que a gente adquire lendo Seleções e tem um nome tão interessante que dá vontade de mandar botar no cartão de visitas.

20 – DIPLOMACIA

Tomei o partido de falar pouco, beber muito e exprimir os tradicionais laços de amizade que ligam Cachoeiro de Itapemirim à Casa Branca.

Mar

Por Rubem Braga

A primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que é menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava ainda mais a imagem. Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espuma, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.

Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de largo, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar...

Depois que o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer - como aquela criança de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mão... Um rapaz de 14 ou 15 anos que nas noites de lua-cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava boa noite...

Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer - que ainda não sabe dizer.

Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar da primeira viagem, mar da gritaria dos meninos, mar dos pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mas das festas, mar terrível daquela morte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto mar da praia, mar de pedra e mar do mangue... A primeira vez que sai sozinho numa canoa, parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado quando a água batia na minha cara e a corrente de “arrieiro” me puxava para fora, não gritei nem fiz gestos de socorro, lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e oleoso, lambendo o batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homem...

Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa, mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam - um punhado de meninos vendo pela prima vez o mar...

Do livro “O Morro do isolamento”. São Paulo, Editora Brasiliense, 1944.



Nenhum comentário:

Postar um comentário