Crônica de Euclides da Cunha
(1866-1909)
Na noite em que faleceu Machado de
Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que
estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar,
para onde dava o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras ontem meninas
que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de famílias –
comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos,
ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram
discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a
palidez completa no recinto onde a saudade glorificava uma existência, além da
morte.
No salão de visitas viam-se alguns
discípulos dedicados, também aparentemente tranquilos.
E compreendia-se desde logo a
antilogia de corações tão ao parecer tranquilos na iminência de uma catástrofe.
Era o contágio da própria serenidade incompatível e emocionante em que ia a
pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase
aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma
contração mais viva o sofrimento, apressava-se em pedir desculpas aos que o
assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou
involuntário deslize. Timbravam em sua primeira e última dissimualação: a
dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo de sua dor. A
sua infinita delicadeza de pensar, de sentir, e de agir, que no trato vulgar
dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento,
transfigurava-se em fortaleza tranquila e soberana.
E
gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na
morte...
Mas aquela placidez augusta
despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário
de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Octavio, comentários
divergentes. Resumia os um amargo desapontamento.
De um modo geral, não se compreendia
que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises
sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses
radiosas –, que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha
indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da
estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e
nobilitadora comoção nacional.
Era pelo menos desanimador tanto
descaso – a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando
imperturbavelmente na normalidade de uma existência complexa – quando faltavam
poucos minutos para que se cerrassem 40 anos de literatura gloriosa...
Neste momento, precisamente ao
anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta
principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um
desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo. Perguntaram-lhe o
nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia
por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela
leitura de seus Livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde
que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitá-lo.
Relutara contra essa ideia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograva
vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe
ao menos notícias certas de seu estado.
E o anônimo
juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente.
Chegou. Não disse uma palavra.
Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho
filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem
dizer palavra, saiu.
À porta,
José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar anônimo. Qualquer que
seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele
momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele
meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de
Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.
Ele saiu – e
houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.
No fastígio de certos estados morais
concretizam-se às vezes as maiores idealizações. Pelos nossos olhos passara a
impressão visual da Posteridade...
30 de setembro de 1908
Jornal do Commercio
Visita ao Bruxo
Admirador de Machado de Assis
desde adolescente, o crítico marxista Astrojildo Pereira deixou alguns dos
estudos mais argutos, originais e reveladores sobre a obra do escritor.
Hélio de Lena Júnior
Nos dias 30 de setembro e 1º de
outubro de 1908, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, publicou uma crônica
de Euclides da Cunha intitulada “A última visita”, sobre a agonia e morte de um
dos maiores romancistas brasileiros de todos os tempos, Joaquim Maria Machado
de Assis (1839-1908). O texto de Euclides, também ele um de nossos grandes
escritores, não seria tão instigante se não mencionasse a visita misteriosa que
o autor de Dom Casmurro recebeu nos seus momentos derradeiros.
Tratava-se de um rapaz de 18 anos
que, no meio da noite, foi à casa de Machado, no bairro carioca do Cosme Velho,
e pediu licença para ver o velho mestre. A residência estava repleta de figuras
importantes do meio literário da época, silenciosas e consternadas, enquanto Machado,
no quarto, agonizava. Mesmo assim, o jovem e desconhecido visitante não se
inibiu diante de todos aqueles medalhões e conseguiu ser conduzido até o leito
do escritor. “Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do
mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por
algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.”
Na sua crônica, Euclides não diz o
nome do “anônimo juvenil”, porque, segundo ele, isso importava pouco. “Qualquer
que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele
momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele
meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de
Machado de Assis –, aquele menino foi o maior homem de sua Terra”. A identidade
do admirador precoce do “Bruxo do Cosme Velho” permaneceria envolta em mistério
por muitos anos, até ser revelada pela grande biógrafa de Machado, Lúcia Miguel
Pereira. Quanto ao prognóstico de Euclides, de que o jovem visitante noturno
“nunca mais subirá tanto na vida”, este se revelou equivocado. Astrojildo
Pereira Duarte da Silva, o rapaz que reverenciou Machado no seu leito de morte,
se tornaria na maturidade um importante intelectual, além de respeitado
propagador do pensamento marxista no Brasil.
Astrojildo Pereira nasceu em Rio Bonito , no interior
fluminense, em 1890. Muito jovem, tornou-se ativista político, frequentando
organizações operárias de orientação anarquista. Em 1918, redigiu, publicou e
distribuiu, praticamente sozinho, o jornal Crônica Subversiva. Nesse mesmo ano,
participou ativamente dos preparativos de uma frustrada insurreição anarquista
e, por conta disso, foi preso pela primeira vez. Libertado em 1919,
distanciou-se do anarquismo e, influenciado pelas idéias bolcheviques, passou a
defender aqui os rumos tomados pela Revolução Russa.
Do Blog Revista de
História.com.br
*Astrojildo Pereira Duarte Silva (Rio Bonito,
8
de novembro de 1890–
Rio de Janeiro, 21
de novembro de 1965)
foi um ex-anarquista,
escritor,
jornalista,
crítico literário e político brasileiro, fundador do Partido Comunista Brasileiro, em 1922.
Em outubro de 1964, foi preso em
decorrência do golpe militar e permaneceu na prisão por três meses, já em
estado de saúde precário. Morreu no Rio de Janeiro, em 1965.
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