Carlos César Higa*
Especial para o Jornal Opção
Especial para o Jornal Opção
No túmulo de Tom Jobim tem o
seguinte epitáfio: “Longa é a arte, tão
breve a vida”. Tal epitáfio valeria também para Noel Rosa que viveu tão
pouco, mas deixou uma grande arte. O livro “Noel Rosa – Uma Biografia”,
escrito por, João Máximo e Carlos Didier trata da vida, da obra e do universo
vivido pelo poeta da Vila Isabel. Uma história rica que não se inicia no dia
que Noel veio ao mundo mediante um fórceps que acabou por deformar seu queixo e
nem termina no dia em que deu seu último suspiro no colo de sua mulher
Lindalva. Uma biografia tão detalhada tem que começar antes do fórceps e
terminar bem depois do colo da mulher que esperava Noel todas as noites, mas
nem sempre ele aparecia.
Na biografia, os autores não deixaram
de escrever sobre a árvore genealógica do compositor. Até o surgimento da Vila
Isabel no mapa carioca está no livro. Biógrafos procuram a todo custo provar ao
leitor que a fruta madura que gerou tantos sabores à arte caiu de uma árvore
genealógica muito especial, diferente de todas as outras. Precisava detalhar
tanto assim a pré-história de Noel Rosa? Máximo e Didier respondem: “Os autores
preferiram correr o risco e deixar o primeiro (capítulo) tal qual está.
Convenceu-os uma esperança: a de que o eventual leitor deste livro não seja de
virar as costas ao que quer que diga respeito a Noel Rosa. Nem mesmo às suíças
do vovô Eduardo”. Não se pode negar a honestidade dos biógrafos. Alertados sobre
o excesso de detalhes na árvore genealógica e na fundação da Vila Isabel,
resolveram correr o risco. Como a história contada no livro é bastante
detalhada pode fazer com que o leitor se canse de saber das “suíças do vovô Eduardo”
ou se perca entre os ancestrais de Noel Rosa. Mas depois que se passa da
pré-história de Noel, a narrativa fica deliciosa.
Máximo e Didier narram a história
conjugando os verbos no presente: “Noel compôs uma canção”, “Noel vai ao Morro
da Mangueira conversar com seu amigo Cartola”. O leitor é guiado pelos autores
a caminhar junto com Noel por um Rio de Janeiro boêmio, ainda capital do Brasil
e que começava a passar pelas profundas transformações que marcariam o século
passado. Cada personagem que cruza o caminho de Noel merece uma pequena
biografia. Indiretamente acabamos conhecendo um pouco sobre Francisco Alves,
Almirante, Aracy de Almeida. Parceiros de música de Noel que conhecemos até
hoje e tantos outros que foram esquecidos pelo tempo. A narrativa conjugada no
presente faz com que o leitor acompanhe cada passo de Noel e leia o livro de
forma vagarosa – saboreando cada página fazendo de conta que o Poeta da Vila
vive – e não quer alongar a leitura porque sabe que o fim está próximo.
A história de Noel Rosa não está
presa apenas a Vila Isabel. Ele atravessou os trilhos da Central do Brasil
para subir o Morro da Mangueira e conversar com seu grande amigo Cartola. Sim,
o branco Noel se dava muito bem com o negro Cartola.
Noel também transitou pela Lapa,
tradicional reduto da boemia carioca. Num daqueles botequins Noel encontrava
com seus colegas de cerveja e de samba. E era ali mesmo, em cima de uma mesa de
bar, que o poeta iniciava suas composições. Às vezes começava e deixava para
outro parceiro terminar ou algum compositor começava um estribilho e, ao ver
Noel Rosa tomando um gole de cerveja, pedia que concluísse a canção. Francisco
Alves tinha a antena artística apurada e reconhecia se um samba era bom ou não
para gravar. Vários sambas Noel compôs para Francisco Alves. Muitas destas
composições serviram de pagamento para um carro que Francisco Alves vendeu para
Noel, apelidado de pavão. Imaginem o tanto de samba creditado a Noel Rosa que
nasceram por causa da dívida do pavão?
Falar de Noel Rosa sem falar de suas amadas
vai faltar alguma coisa. Máximo e Didier narram detalhadamente as paixões que
balançaram o coração do poeta. Ceci foi uma das que mais abalaram o coração de
Noel. Mas foi com Lindalva que Noel casou. Sim, o boêmio e mulherengo Noel Rosa
se casou, mas por conta da tuberculose, a doença mais temida se sua época e que
acabou tornando a vida de Noel tão breve. Um clima mais fresco era um dos
remédios receitados na época para curar a tuberculose. Lá foram Noel e a mulher
Lindalva para a capital mineira. A Belo Horizonte dos anos 1930 aparece no
livro detalhada. Não adiantava Noel ficar de repouso. O seu lugar era um
botequim que tivesse alguém bebendo e tocando samba. A pacata capital mineira
ficou agitada com a presença do Poeta da Vila. Mas o Rio de Janeiro era o seu
lugar. A Vila Isabel o chamava como uma mãe chama um filho pequeno para
almoçar.
Noel e Lindalva
As 533 páginas que compõem a
biografia de Noel Rosa são ricas em detalhes, fotos do cantor sempre acentuando
seu queixo defeituoso por causa do fórceps. Traz também um box com palavras de
personagens desta história narrando seus causos com o Poeta da Vila. No final
do livro, temos a musicografia e a discografia de Noel.
Como foi dito no início, esta biografia
tão detalhada de Noel Rosa não começou no dia do seu nascimento e nem terminou
no dia que seu caixão baixou na sepultura e Ary Barroso, discursando
fervorosamente, quase tropeçou e foi junto com Noel. Os autores foram além do
dia 4 de maio de 1937. Mostram para o leitor a falta de memória do nosso país.
Desde a sua morte até o princípio da década de 1950, Noel Rosa era apenas uma
pequena lembrança na Vila Isabel. Foi preciso Aracy de Almeida, sua intérprete
preferida, resgatar o poeta. Foi na boate Vogue, em Copacabana, que a Dama do
Encantado mostrou que Noel Rosa teve uma vida breve, mas sua arte não poderia
cair no esquecimento. Quase 20 anos depois da sua morte, Noel voltava a
despertar interesse no Rio de Janeiro que já não era mais o Rio de Janeiro
boêmio que o assistiu a compor seus sambas, correr atrás de um rabo de saia e
beber cerveja quente porque a febre não o largava.
Uma biografia tão rica, tão
detalhada, tão bem escrita deveria ser relançada para que as próximas gerações
conheçam Noel Rosa e não fiquem achando que o rompimento do grupo Exaltasamba
foi um baque no samba brasileiro. Antes do cantor Thiaguinho sair em carreira
solo muitos outros pavimentaram o caminho. Noel Rosa foi um deles que cantou
samba num período que ser sambista era sinônimo de vagabundagem. Relançar este
livro, aproveitando os 75 anos de morte do Poeta da Vila, poderia evitar que a
curta memória do brasileiro esquecesse o compositor de “Com que roupa eu vou? e
“Feitiço da Vila”.
A curta vida de Noel não o impediu de fazer do samba uma arte. Dr. José Rodrigues da Graça Melo, o médico que ajudou a trazer Noel ao mundo, no dia que foi entregá-lo para a eternidade disse: “Noel apenas viveu a vida que quis viver”. Pena que a vida que Noel viveu foi tão curta. Tão curta para uma longa arte.
*Carlos César Higa é mestrando em História.
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