(16 de setembro de 1914 - 27 de agosto de 1974)
O derradeiro gole
Demosthenes Gonzáles dera um pulo até
a casa dos Rodrigues, em julho de 1974, para saber de Lupicínio, cuja saúde já
não andava na sua melhor forma. Cerenita trouxe um copo de uísque para o
visitante e deixou os dois conversando na sala. Assim que ela saiu de vista,
Lupi pediu ao “compadre” uma bicada, para matar a saudade. Foi certamente a sua
última.
Um coração que amou demais
A Dona Divergência entre a vida e
a morte é uma dama com nervos de aço, sem sangue nas veias e nem coração. A
saúde de Lupicínio demonstrava sinais de cansaço, à medida em que se aproximava
dos 60 anos. Justo em um período de retorno ao primeiro time da música popular
brasileira, o boêmio convicto começava a enfrentar um traiçoeiro coquetel de sofrimento
por conta de problemas como diabetes, infecção urinária, insuficiência renal e
isquemia cardíaca. Primeiro havia sido uma pneumonia contraída durante
temporada em São Paulo no
final de 1972: coisa rara em sua biografia, Lupi já recusava convites e até
enviara recado a Paulinho da Viola, desculpando-se por não lhe dar pessoalmente
o seu abraço em show do sambista carioca em Porto Alegre. Na última
semana de junho de 1974, ele enfrentaria dois dias de internação por conta de
complicações diversas, que motivaram inclusive uma mudança do compositor para
uma casa no Bairro Partenon, mais próximo do irmão e concunhado Chiquinho. Sem
abandonar por completo a vida noturna, Lupi voltaria a ser internado em 21 de
agosto, dessa vez na Unidade de Tratamento Coronariano. Foram seis derradeiros
dias, alternando momentos de bom humor e conformidade com o agravamento de sua
condição.
Um dos enfermeiros jamais
esqueceria o comentário daquele paciente, ao constatar que não passava de um
ilustre desconhecido para o outro jovem plantonista que o atendia no quarto:
“Se eu fosse o Roberto Carlos, garanto que tu saberias”. Não lhe faltavam
planos, marcados pela certeza mórbida, porém, de que ali se escrevia as últimas
estrofes de sua vida. Ele teria inclusive manifestado à esposa um último
pedido, de que o pessoal cantasse o samba Se Acaso Você Chegasse em
seu enterro, em vez de chorar. “Quando a gente perde a ilusão, deve sepultar o
coração”, já filosofava a letra de Nunca. Como ele sepultou. Pouco depois
das duas da tarde (bem no horário em que Lupi costumava tirar a sua sesta) 27 de
agosto de 1974, as rádios interromperam a sua programação para noticiar que o
maior compositor popular gaúcho se despedia para sempre dos amigos, das musas e
da boemia. Menos de vinte dias o separavam de seus 60 anos de idade, que seriam
comemorados em 16 de setembro.
O adeus de Lupi, por si só,
renderia assunto para um samba-canção denso como os seus principais sucessos.
“Não nos deixe, velho!”, soluçava Dona Cerenita, amparada por Lupinho. Após o
velório no Estádio Olímpico Monumental, casa de seu time do coração, o cortejo
percorreu os poucos quilômetros até o Cemitério São Miguel e Almas, ao som do Hino
do Grêmio tocado em câmera lenta no piston dourado de um músico da Ospa.
Nas sacadas, lenços brancos acenavam para o cortejo de veículos e pedestres, em
meio a um esquema especial de trânsito organizado pela Brigada Militar. Na
lanchonete do cemitério, mesas e balcões lotados de boêmios e aperitivos, após
uma fria madrugada de portas fechadas em alguns dos bares que serviam de
segundo lar para Lupi, um homem que não curtia ficar sozinho. O resto era um
silêncio que só voltaria ser quebrado pela mais triste serenata já ouvida em Porto Alegre. Sob holofotes,
câmeras e microfones, um regional se formou em frente ao jazigo 21685, com o
violão de Darcy Alves, a flauta de Plauto Cruz, o cavaquinho de Preto, saxofone
de Alcebíades, o pandeiro de Valtinho, o surdo de Mário e a voz de Ademar Silva
a puxar o coro de centenas de familiares, amigos, colegas e fâs nos versos
sentimentais de Nervos de Aço, Felicidade e Se Acaso Você
Chegasse. Nem mesmo o empregado da funerária conteve o pranto. Às onze da
manhã, após um inflamado discurso do jornalista Paulo Sant´Ana, a saudade já
morava para sempre no peito. O público já se dispersava quando um senhor alto,
magro e embriagado subiu com dificuldades as escadas até o túmulo
recém-lacrado, diante do qual tirou um chapéu imaginário: “Té logo, velho...”
A última composição
Lupicínio tinha lá suas
superstições. Dentre elas estava a de evitar o adjetivo “último”. Último trago,
última música, última vez... Na dúvida, melhor não brincar com fogo. Na
biografia romanceada Roteiro de Um Boêmio, o amigo Demosthenes Gonzalez
relembra que, poucos meses antes de falecer, o compositor seguia desafiando as
recomendações médicas, levando a sua saúde debilitada para passear na boemia. E
foi madrugando no Adelaide´s Bar com os amigos Johnson e Maneco Spina, numa
fria noite de julho de 1974 que Lupi rabiscou no guardanapo o seu derradeiro
samba-canção: Coquetel de Sofrimento, que mais tarde ganharia voz pelo carioca
Jamelão. O mesmo Demosthenes relembrou a derradeira composição de Lupi, sem
título e cuja melodia se perdeu no esquecimento.
Abaixo, a letra sem título e sem melodia...
Hoje saí de casa
Com
vontade de viver.
Calcei
meu sapato novo
E
pus meu terno de morrer.
Fui
visitar o bar
Em
que eu costumava beber.
Seu
Manoel não estava,
Veio
outro me atender.
Perguntei
por meus amigos
E
deles ninguém sabia.
A
garçonete era outra
Nem
era mais a Maria.
Me
olhei com desgosto
No
espelho que estava ao lado,
E
vi no meu próprio rosto
Que
eu também havia mudado.
Eu
fui tão feliz contigo,
Desde
quando te encontrei,
Que
o tempo foi se passando
E
eu nem sequer notei,
Por
isso voltei par casa
Doidinho pra te abraçar.
(Do livro Almanaque do Lupi 100 Anos,
de Marcello Campos - Editora Cidade)
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