quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Os últimos dias de Lupicínio Rodrigues


(16 de setembro de 1914 - 27 de agosto de 1974)


Lupi e Hamilton Chaves, diante da casa onde nasceu o
compositor, na Ilhota,  Travessa Batista.
Foto de 1952


Lupi aos 24 anos

O derradeiro gole

Demosthenes Gonzáles dera um pulo até a casa dos Rodrigues, em julho de 1974, para saber de Lupicínio, cuja saúde já não andava na sua melhor forma. Cerenita trouxe um copo de uísque para o visitante e deixou os dois conversando na sala. Assim que ela saiu de vista, Lupi pediu ao “compadre” uma bicada, para matar a saudade. Foi certamente a sua última.

Um coração que amou demais


A Dona Divergência entre a vida e a morte é uma dama com nervos de aço, sem sangue nas veias e nem coração. A saúde de Lupicínio demonstrava sinais de cansaço, à medida em que se aproximava dos 60 anos. Justo em um período de retorno ao primeiro time da música popular brasileira, o boêmio convicto começava a enfrentar um traiçoeiro coquetel de sofrimento por conta de problemas como diabetes, infecção urinária, insuficiência renal e isquemia cardíaca. Primeiro havia sido uma pneumonia contraída durante temporada em São Paulo no final de 1972: coisa rara em sua biografia, Lupi já recusava convites e até enviara recado a Paulinho da Viola, desculpando-se por não lhe dar pessoalmente o seu abraço em show do sambista carioca em Porto Alegre. Na última semana de junho de 1974, ele enfrentaria dois dias de internação por conta de complicações diversas, que motivaram inclusive uma mudança do compositor para uma casa no Bairro Partenon, mais próximo do irmão e concunhado Chiquinho. Sem abandonar por completo a vida noturna, Lupi voltaria a ser internado em 21 de agosto, dessa vez na Unidade de Tratamento Coronariano. Foram seis derradeiros dias, alternando momentos de bom humor e conformidade com o agravamento de sua condição.

Um dos enfermeiros jamais esqueceria o comentário daquele paciente, ao constatar que não passava de um ilustre desconhecido para o outro jovem plantonista que o atendia no quarto: “Se eu fosse o Roberto Carlos, garanto que tu saberias”. Não lhe faltavam planos, marcados pela certeza mórbida, porém, de que ali se escrevia as últimas estrofes de sua vida. Ele teria inclusive manifestado à esposa um último pedido, de que o pessoal cantasse o samba Se Acaso Você Chegasse em seu enterro, em vez de chorar. “Quando a gente perde a ilusão, deve sepultar o coração”, já filosofava a letra de Nunca. Como ele sepultou. Pouco depois das duas da tarde (bem no horário em que Lupi costumava tirar a sua sesta) 27 de agosto de 1974, as rádios interromperam a sua programação para noticiar que o maior compositor popular gaúcho se despedia para sempre dos amigos, das musas e da boemia. Menos de vinte dias o separavam de seus 60 anos de idade, que seriam comemorados em 16 de setembro.

O adeus de Lupi, por si só, renderia assunto para um samba-canção denso como os seus principais sucessos. “Não nos deixe, velho!”, soluçava Dona Cerenita, amparada por Lupinho. Após o velório no Estádio Olímpico Monumental, casa de seu time do coração, o cortejo percorreu os poucos quilômetros até o Cemitério São Miguel e Almas, ao som do Hino do Grêmio tocado em câmera lenta no piston dourado de um músico da Ospa. Nas sacadas, lenços brancos acenavam para o cortejo de veículos e pedestres, em meio a um esquema especial de trânsito organizado pela Brigada Militar. Na lanchonete do cemitério, mesas e balcões lotados de boêmios e aperitivos, após uma fria madrugada de portas fechadas em alguns dos bares que serviam de segundo lar para Lupi, um homem que não curtia ficar sozinho. O resto era um silêncio que só voltaria ser quebrado pela mais triste serenata já ouvida em Porto Alegre. Sob holofotes, câmeras e microfones, um regional se formou em frente ao jazigo 21685, com o violão de Darcy Alves, a flauta de Plauto Cruz, o cavaquinho de Preto, saxofone de Alcebíades, o pandeiro de Valtinho, o surdo de Mário e a voz de Ademar Silva a puxar o coro de centenas de familiares, amigos, colegas e fâs nos versos sentimentais de Nervos de Aço, Felicidade e Se Acaso Você Chegasse. Nem mesmo o empregado da funerária conteve o pranto. Às onze da manhã, após um inflamado discurso do jornalista Paulo Sant´Ana, a saudade já morava para sempre no peito. O público já se dispersava quando um senhor alto, magro e embriagado subiu com dificuldades as escadas até o túmulo recém-lacrado, diante do qual tirou um chapéu imaginário: “Té logo, velho...”

A última composição

Lupicínio tinha lá suas superstições. Dentre elas estava a de evitar o adjetivo “último”. Último trago, última música, última vez... Na dúvida, melhor não brincar com fogo. Na biografia romanceada Roteiro de Um Boêmio, o amigo Demosthenes Gonzalez relembra que, poucos meses antes de falecer, o compositor seguia desafiando as recomendações médicas, levando a sua saúde debilitada para passear na boemia. E foi madrugando no Adelaide´s Bar com os amigos Johnson e Maneco Spina, numa fria noite de julho de 1974 que Lupi rabiscou no guardanapo o seu derradeiro samba-canção: Coquetel de Sofrimento, que mais tarde ganharia voz pelo carioca Jamelão. O mesmo Demosthenes relembrou a derradeira composição de Lupi, sem título e cuja melodia se perdeu no esquecimento.

Abaixo, a letra sem título e sem melodia...


Hoje saí de casa
Com vontade de viver.
Calcei meu sapato novo
E pus meu terno de morrer.

Fui visitar o bar
Em que eu costumava beber.
Seu Manoel não estava,
Veio outro me atender.

Perguntei por meus amigos
E deles ninguém sabia.
A garçonete era outra
Nem era mais a Maria.

Me olhei com desgosto
No espelho que estava ao lado,
E vi no meu próprio rosto
Que eu também havia mudado.

Eu fui tão feliz contigo,
Desde quando te encontrei,
Que o tempo foi se passando
E eu nem sequer notei,
Por isso voltei par casa
Doidinho pra te abraçar.

(Do livro Almanaque do Lupi 100 Anos,
de Marcello Campos - Editora Cidade)


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