domingo, 14 de fevereiro de 2016

Páginas de saudade



Mário de Alencar
(1872-1925)

Comecei a escrever estas páginas algumas horas antes de morrer Machado de Assis; retomei-as um mês depois, e pelo tempo adiante, sem outro pensamento que o de fazer falar a saudade. Vão como saíram, um pouco desconexas, conforme é o caráter delas, de páginas soltas. Não cuidei de escrever sobre a obra do escritor, senão do homem, contando as impressões da nossa convivência de alguns anos. Era inevitável por isso falar também de mim; mas estou que o fiz o estritamente necessário e ninguém achará que pretendi pôr-me em realce à conta da lembrança do meu grande amigo.

Venho da casa de Machado de Assis. Lá estive todo o dia de sábado, ontem e hoje, e agora estou sem ânimo de continuar a ver-lhe o sofrimento; tenho receio de assistir ao fim que eu desejo não tarde. Eu, seu amigo e seu admirador grande, desejo que ele morra, mas não tenho coragem de o ver morrer. O meu pensamento está com ele, e escrever sobre ele agora é um modo de acompanhá-lo, de velar carinhosamente a seu lado nos últimos instantes em que possa ainda aquele nobre e alto espírito pousar no frágil corpo trabalhado. Ele ignora o horrível mal que o vai devastando; porém sofre; e o que ele temia era o sofrimento físico, que anula o valor moral e afeia e entorpece a criatura. Ouvi-lhe uma vez estas palavras acerca de Arthur de Oliveira: – Levou tempo a morrer de uma moléstia grave. Uma moléstia grave não se contenta de uma merenda ligeira, à ponta de uma mesa; não, ela quer comer sentada e a fartar, e devagarinho, saboreando.

Não lhe perdoou essa ironia o acaso, mestre ou inimigo de ironias. Era fina e justa a imagem, e a sorte, para mostrar que o era, deu-lhe uma moléstia grave por companheira inseparável dos seus últimos dias. Não bastava que ele sofresse na alma; e eu sei quanto ele sofreu, desde que ficou só no mundo, há cinco anos. Ouvia-lhe as falas íntimas e posso afirmar que lhe fiquei conhecendo a feição de bondade que ele trazia talvez velada para o mundo.

Era essencialmente bom e puro, de uma delicadeza e sensibilidade que não podia, por mais que o quisesse, acomodar-se à rudeza das cousas e dos homens. Essa mesma delicadeza e sensibilidade o fez tímido e aparentemente fraco, a ele que foi um forte. Contradição da natureza, que tão bem se exprimiu no genial humor de toda a sua obra. Os que só conhecerem o escritor não adivinharão o homem, e os que só tiverem lido superficialmente o homem e o escritor entenderão que houve nele duas figuras distintas e opostas, que entretanto não eram nem distintas nem opostas, senão uma só figura, que se velava ou descobria voluntariamente, pelo respeito de si mesma e o receio de não parecer sincera, aos olhos dos outros.

A beleza foi a sua inspiradora e guia, a beleza divina, que é a perfeição moral e plástica; repousada para a atitude que forma a estátua e medida para a eternidade contra a ação do tempo, que é como um vento forte – onde lhe embaraçam o caminho com o excessivo, aí tudo ele abate e destrói. Capaz de ser terno, com abundância de coração, Machado de Assis escondeu no escritor a ternura do homem, e na intimidade do afeto reservava a manifestação do seu sentimento à eloquência do gesto sóbrio. Certa maneira de apertar a mão equivalia nele a um grito de alma; o seu olhar sabia suprir toda a piedade e simpatia que a voz temia dizer, fugindo à ênfase de convenção ou à palavra banal. Era por instinto e por estudo um elegante na alma e na inteligência. Jamais lhe surpreendi o gosto da maledicência; mais propenso a dizer e pensar o bem que o mal, não o dizia logo, sem a certeza de o dizer acertado, para não desmoralizar o bem que dissesse. Do mal que pensava, todo ou quase todo provinha da suspicácia, própria de um tímido e de um experimentado que sabe discernir e raciocinar o sofrimento.

Tinha o espírito forrado de uma filosofia forte, que lhe dera a própria vida e a cultura. Sabia que o que é, é porque tem de ser. Compreendia a maldade e a bondade, admirava o idealismo da regeneração humana, entendendo a sua inutilidade e ineficácia; não tinha nenhuma forma de religião e admitia e respeitava todas as religiões. Tudo era expressão humana, e não lhe cabia senão olhar e comentar os homens. Não os acusava, reproduzia-os; e à natureza má opunha o sorriso inteligente, que é o gesto adequado à beleza, melhor que as lágrimas indiscretas. Era um puro, nobre e grande artista, superior às modalidades de escolas. Com o decorrer do tempo, agora que vai acabar a presença corpórea do escritor, crescerá a admiração da sua obra e ficará para sempre. Valeu-lhe sobretudo, para a fazer tão igual, um gosto instintivo que, dirigindo-lhe a cultura, na mesma cultura se apurou e se firmou, evitando-lhe o erro em pontos de arte e estilo.

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Mário de Alencar (Mário Cochrane de Alencar), poeta, jornalista, contista e romancista, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 30 de janeiro de 1872, e faleceu na mesma cidade em 8 de dezembro de 1925.
Filho do grande romancista José de Alencar. Fez os primeiros estudos no Colégio Pedro II, obtendo o título de Bacharel em Ciências e Letras, e formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo.

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