Por Jaguar
Quando você para de estalo de beber,
começa a procurar coisas para preencher os dias que, de repente, ficam
in-ter-mi-ná-veis. Por exemplo, desencavar envelopes bolorentos estufados de
antigos recortes. Num deles encontrei, num Pasquim de 1986 (!), uma crônica que
escrevi: “10 anos sem Madame Satã”. Foi meu vizinho da porta ao lado: morávamos
num ‘balança, mas não cai’ na Rua Taylor, com mais de 200 minúsculos
(in)cômodos: quartinhos onde só cabiam cama, cabideiro, pia, fogareiro, privada
e chuveiro.
Tinha muito cigano; se esfaqueavam e
tentavam arrombar minha porta. Eu botava uns quatro cadeados. Quando voltava,
pelos menos dois tinham sido arrombados. Satã, então, foi meu melhor amigo;
todas as noites era o mesmo programa: bordejo pelos botecos e cabarés da Lapa
ou perto. Gostava de um que ficava num segundo andar, perto da Mesbla. Grande
bailarino, dançava sozinho, o pessoal abria a roda só para ele. Uma entidade
negra girando no salão, Maurice Bejart ficaria de queixo caído. A noitada (que
os bobões hoje chamam de balada) geralmente terminava no Capela, onde ele tinha
dado a célebre pancada que matou o sambista Geraldo Pereira.
Às vezes eu, de porre, não me tocava
e lhe passava o menu. Levava sempre a mesma bronca, naquela voz de taquara
rachada (que Lázaro Ramos esqueceu quando fez o filme sobre Satã, apesar de me
consultar antes): “Jaguar, você sabe que sou analfabeto”. Depois, o garçom
tinha que ouvir as exigências do mestre de forno e fogão, o bife voltava à
cozinha até ser aprovado, o arroz tinha que ter molho de tomate “porque arroz
branco é comida de doente”. Foi no Capela que assisti a um papo de Satã com um
famoso criminalista. O assunto foi direito carcerário, e Satã deu show de
conhecimento.
Pudera, meu amigo tinha passado 25
anos em cana, principalmente na Ilha Grande, onde virou atração turística. Não
tinha saco para ficar relembrando as façanhas legendárias, as fugas, os
entreveros com a Polícia Especial, a briga histórica com Mário Vianna (que foi
da PE); quebraram, em duas horas de pancadaria, um cabaré da Mem de Sá. Amarrava
a navalha aberta num barbante e girava como uma espada de samurai, enfrentava
uma guarnição da Rádio Patrulha. Merecia um monumento na Lapa. Mas só foi
homenageado em São Paulo ,
onde nunca esteve: o bar Madame Satã (os novos donos tiraram seu nome, ficou só
Madame) onde, por ironia do destino, só toca rock paulista.
*Crônica de 2012 no jornal O Dia,
sobre a morte de Madame Satã, em 1976, adaptado, no título, para 2016.
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