segunda-feira, 11 de abril de 2016

40 anos sem Madame Satã*


Por Jaguar


Quando você para de estalo de beber, começa a procurar coisas para preencher os dias que, de repente, ficam in-ter-mi-ná-veis. Por exemplo, desencavar envelopes bolorentos estufados de antigos recortes. Num deles encontrei, num Pasquim de 1986 (!), uma crônica que escrevi: “10 anos sem Madame Satã”. Foi meu vizinho da porta ao lado: morávamos num ‘balança, mas não cai’ na Rua Taylor, com mais de 200 minúsculos (in)cômodos: quartinhos onde só cabiam cama, cabideiro, pia, fogareiro, privada e chuveiro.

Tinha muito cigano; se esfaqueavam e tentavam arrombar minha porta. Eu botava uns quatro cadeados. Quando voltava, pelos menos dois tinham sido arrombados. Satã, então, foi meu melhor amigo; todas as noites era o mesmo programa: bordejo pelos botecos e cabarés da Lapa ou perto. Gostava de um que ficava num segundo andar, perto da Mesbla. Grande bailarino, dançava sozinho, o pessoal abria a roda só para ele. Uma entidade negra girando no salão, Maurice Bejart ficaria de queixo caído. A noitada (que os bobões hoje chamam de balada) geralmente terminava no Capela, onde ele tinha dado a célebre pancada que matou o sambista Geraldo Pereira.

Às vezes eu, de porre, não me tocava e lhe passava o menu. Levava sempre a mesma bronca, naquela voz de taquara rachada (que Lázaro Ramos esqueceu quando fez o filme sobre Satã, apesar de me consultar antes): “Jaguar, você sabe que sou analfabeto”. Depois, o garçom tinha que ouvir as exigências do mestre de forno e fogão, o bife voltava à cozinha até ser aprovado, o arroz tinha que ter molho de tomate “porque arroz branco é comida de doente”. Foi no Capela que assisti a um papo de Satã com um famoso criminalista. O assunto foi direito carcerário, e Satã deu show de conhecimento.

Pudera, meu amigo tinha passado 25 anos em cana, principalmente na Ilha Grande, onde virou atração turística. Não tinha saco para ficar relembrando as façanhas legendárias, as fugas, os entreveros com a Polícia Especial, a briga histórica com Mário Vianna (que foi da PE); quebraram, em duas horas de pancadaria, um cabaré da Mem de Sá. Amarrava a navalha aberta num barbante e girava como uma espada de samurai, enfrentava uma guarnição da Rádio Patrulha. Merecia um monumento na Lapa. Mas só foi homenageado em São Paulo, onde nunca esteve: o bar Madame Satã (os novos donos tiraram seu nome, ficou só Madame) onde, por ironia do destino, só toca rock paulista.

*Crônica de 2012 no jornal O Dia, sobre a morte de Madame Satã, em 1976, adaptado, no título, para 2016.


Jaguar, pseudônimo de Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, (Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1932) é um cartunista brasileiro. 


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