A morte do lidador
Coelho Neto
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Entramos.
Em um quarto, alumiado por uma
janela, onde mal cabiam uma cama de solteiro, um lavatório e duas cadeiras,
jazia o pelejador da campanha magnífica.
Magro, esquelético, com os olhos
encovados no fundo das órbitas, a fronte vasta, escalvada, de uma cor baça de
bronze empoeirado, a boca reentrante à falta de dentes, sem voz, meio encolhido
na enxerga, as pernas cobertas por um chale azul, Patrocínio* sorria e chorava,
estendendo-me os braços que eram ossos envoltos em pele cinérea.
Sobre o lavatório estava um velho
prato com um resto de mingau, às moscas; aos pés da cama, pelos travesseiros,
no chão, os jornais do dia, todos. Na parede, um Cristo morto.
Não houve
palavras. Fitamo-nos e eu o vi através de uma névoa... depois.
Os passarinhos cantavam nas árvores
em flor e o sol entrava quente e rútilo pela janela aberta. Dia lindo! E ele
soluçou: – “Meu amigo!” Que respondi? Não sei. Conversamos. Ele não teve uma
queixa. Metendo a mão sob o travesseiro, para tirar o lenço, deixou cair uma
tira de papel escrita a lápis. Pediu-ma sorrindo.
– É meu artigo. Escrevo-os aqui na
cama, a lápis. Quando me faltam forças, dito a minha mulher. A lápis, hein!
Mas, deixemos de tristeza. Falemos do passado...
E falamos... Oh! o passado daquele
homem, um dos grandes heróis da Pátria... a sua história, que é a de toda uma
época, a sua campanha, o seu canto triunfal!...
Onde estava o povo que o levantara
nos braços e o aclamara em delírio no grande dia? Onde estava imensa legião
negra que ele arrancara das senzalas – corpos que ele soltara na liberdade,
almas que ele alumiara, corações que franqueara ao amor, espíritos que
desentenebrecera?
Onde estavam os escravos de ontem? E
a Pátria que ele tanto enobrecera, o seu culto, o seu orgulho, o seu
entusiasmo, o seu amor? E os que havia socorrido? E os que ele havia encantado
com as suas páginas fulgurantes? Todos aqueles que subiam as escadas do seu
jornal com louvaminhas e flores, os que se inclinavam zumbridos à sua passagem,
os que lhe pediam socorro, que ele nunca negou? Onde estavam?
Lá fora, as cigarras vívidas faziam
um chilreio jucundo, pombos batiam asas e o sino festivo enchia o ar de sons.
– Em que pensas?
– Eu?
– Sabes? Isto há de passar. Só peço a
Deus maus um ano. Viste o balão? Está quase pronto. Mais um ano e... adeus
terra! Lá vai o Zé do Pato... Lá vai! Lá vai! E eu pelas nuvens além,
perdendo-me no éter, longe, longe, respirando o ar de Deus, o grande ar virgem
da altura.
Meneou a cabeça com desânimo.
Uma rapariguita entrou com uma carta,
deu-lha. Ele rasgou nervosamente o invólucro, abriu-a: franziu o sobrolho,
notei que a mão lhe tremia. Escondeu o papel e, com os olhos turbados de
tristeza, fitos no céu, que era toda alegria, repetiu com uma voz que se perdia
em angústia:
– Lá, longe!...
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E foi! Foi, não levado pelo seu
veículo, mas pela Morte, quando ainda raspava o crânio com os ossos dos dedos,
para arrancar as últimas migalhas.
Morreu como vivera: defendendo os
fracos, batendo-se pela Liberdade.
*José do Patrocínio
José do Patrocínio
José Carlos do Patrocínio (Campos
dos Goytacazes, 9 de outubro de 1853 – Rio de Janeiro, 29
de janeiro de 1905) foi um farmacêutico, jornalista, escritor, orador e
ativista político brasileiro. Destacou-se como uma das figuras mais
importantes dos movimentos Abolicionista e Republicano no país. Foi também
idealizador da Guarda Negra, que era formada por negros e ex-escravos.
Concentrando-se a sua atenção no
moderno invento da aviação. Iniciou a construção de um dirigível (balão)
de 45 metros ,
o "Santa Cruz", com o sonho de voar, jamais concluído. Numa homenagem
a Santos Dumont, realizada no Teatro Lírico, quando discursava
saudando o inventor, foi acometido de uma hemoptise, sintoma da tuberculose que
o vitimou. Faleceu pouco depois, aos 51 anos de idade, aquele que é considerado
por seus biógrafos o maior de todos os jornalistas da abolição.
No dia 29 de janeiro de 1905, José do
Patrocínio sentou-se em frente da sua pequena escrivaninha no modesto barracão
em que vivia no bairro de Inhaúma, no Rio de Janeiro. Começou a redigir:
“Fala-se na organização
de uma sociedade protetora dos animais. Tenho pelos animais um respeito
egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar, e que têm
conscientemente revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar
depois de brutalmente espancado por um carroceiro que atulhava a carroça com
carga para uma quadriga, e que queria que o mísero animal a arrancasse do
atoleiro...”
Não terminou a palavra nem a frase –
Um jato de sangue jorrou-lhe da boca. O “Tigre do Abolicionismo” – pobre e
desamparado – morria, imerso em dívidas e mergulhado no esquecimento.
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