quarta-feira, 27 de abril de 2016

A morte de um abolicionista

A morte do lidador

Coelho Neto

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Entramos.

Em um quarto, alumiado por uma janela, onde mal cabiam uma cama de solteiro, um lavatório e duas cadeiras, jazia o pelejador da campanha magnífica.

Magro, esquelético, com os olhos encovados no fundo das órbitas, a fronte vasta, escalvada, de uma cor baça de bronze empoeirado, a boca reentrante à falta de dentes, sem voz, meio encolhido na enxerga, as pernas cobertas por um chale azul, Patrocínio* sorria e chorava, estendendo-me os braços que eram ossos envoltos em pele cinérea.

Sobre o lavatório estava um velho prato com um resto de mingau, às moscas; aos pés da cama, pelos travesseiros, no chão, os jornais do dia, todos. Na parede, um Cristo morto.

Não houve palavras. Fitamo-nos e eu o vi através de uma névoa... depois.

Os passarinhos cantavam nas árvores em flor e o sol entrava quente e rútilo pela janela aberta. Dia lindo! E ele soluçou: – “Meu amigo!” Que respondi? Não sei. Conversamos. Ele não teve uma queixa. Metendo a mão sob o travesseiro, para tirar o lenço, deixou cair uma tira de papel escrita a lápis. Pediu-ma sorrindo.

– É meu artigo. Escrevo-os aqui na cama, a lápis. Quando me faltam forças, dito a minha mulher. A lápis, hein! Mas, deixemos de tristeza. Falemos do passado...

E falamos... Oh! o passado daquele homem, um dos grandes heróis da Pátria... a sua história, que é a de toda uma época, a sua campanha, o seu canto triunfal!...

Onde estava o povo que o levantara nos braços e o aclamara em delírio no grande dia? Onde estava imensa legião negra que ele arrancara das senzalas – corpos que ele soltara na liberdade, almas que ele alumiara, corações que franqueara ao amor, espíritos que desentenebrecera?

Onde estavam os escravos de ontem? E a Pátria que ele tanto enobrecera, o seu culto, o seu orgulho, o seu entusiasmo, o seu amor? E os que havia socorrido? E os que ele havia encantado com as suas páginas fulgurantes? Todos aqueles que subiam as escadas do seu jornal com louvaminhas e flores, os que se inclinavam zumbridos à sua passagem, os que lhe pediam socorro, que ele nunca negou? Onde estavam?

Lá fora, as cigarras vívidas faziam um chilreio jucundo, pombos batiam asas e o sino festivo enchia o ar de sons.

– Em que pensas?

– Eu?

– Sabes? Isto há de passar. Só peço a Deus maus um ano. Viste o balão? Está quase pronto. Mais um ano e... adeus terra! Lá vai o Zé do Pato... Lá vai! Lá vai! E eu pelas nuvens além, perdendo-me no éter, longe, longe, respirando o ar de Deus, o grande ar virgem da altura.

Meneou a cabeça com desânimo.

Uma rapariguita entrou com uma carta, deu-lha. Ele rasgou nervosamente o invólucro, abriu-a: franziu o sobrolho, notei que a mão lhe tremia. Escondeu o papel e, com os olhos turbados de tristeza, fitos no céu, que era toda alegria, repetiu com uma voz que se perdia em angústia:

– Lá, longe!...

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E foi! Foi, não levado pelo seu veículo, mas pela Morte, quando ainda raspava o crânio com os ossos dos dedos, para arrancar as últimas migalhas.

Morreu como vivera: defendendo os fracos, batendo-se pela Liberdade.

*José do Patrocínio


José do Patrocínio

José Carlos do Patrocínio (Campos dos Goytacazes, 9 de outubro de 1853 – Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1905) foi um farmacêutico, jornalista, escritor, orador e ativista político brasileiro. Destacou-se como uma das figuras mais importantes dos movimentos Abolicionista e Republicano no país. Foi também idealizador da Guarda Negra, que era formada por negros e ex-escravos.

Concentrando-se a sua atenção no moderno invento da aviação. Iniciou a construção de um dirigível (balão) de 45 metros, o "Santa Cruz", com o sonho de voar, jamais concluído. Numa homenagem a Santos Dumont, realizada no Teatro Lírico, quando discursava saudando o inventor, foi acometido de uma hemoptise, sintoma da tuberculose que o vitimou. Faleceu pouco depois, aos 51 anos de idade, aquele que é considerado por seus biógrafos o maior de todos os jornalistas da abolição.

No dia 29 de janeiro de 1905, José do Patrocínio sentou-se em frente da sua pequena escrivaninha no modesto barracão em que vivia no bairro de Inhaúma, no Rio de Janeiro. Começou a redigir:

“Fala-se na organização de uma sociedade protetora dos animais. Tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar, e que têm conscientemente revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar depois de brutalmente espancado por um carroceiro que atulhava a carroça com carga para uma quadriga, e que queria que o mísero animal a arrancasse do atoleiro...”

Não terminou a palavra nem a frase – Um jato de sangue jorrou-lhe da boca. O “Tigre do Abolicionismo” – pobre e desamparado – morria, imerso em dívidas e mergulhado no esquecimento.





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