domingo, 24 de abril de 2016

Crônicas Brasileiras


O andar


(Dois desejos - por Seth)

Aconteceu na Avenida Copacabana, esquina de Santa Clara. Uma jovem senhora chamou o guarda e apontou o homem, encostado a um poste:
– Prenda este homem, que ele está se portando inconvenientemente.
Era um homem magro, pálido, vestido em casimira velhinha. Não tinha cara de gente má. Ao contrário, seus olhos eram doces e mendigos.
O policial segurou o homem pela lapela. O homem não se mexeu. Apenas levantou os olhos e perguntou:
– Por quê?
A senhora estava uma fúria e dizia num fôlego só:
– Há uma hora este cidadão me segue. Começou no lotação. Desceu quando eu desci. Entrei numa loja e ele entrou também. Andei um quarteirão e ele andou também. Entrei no mercadinho e ele entrou também...
– E lhe disse alguma coisa?
– Não. Só olhava.
O guarda soltou a lapela do homem. O homem agradeceu. O guarda dirigiu-se ainda à mulher:
– Mas ele só olhava?
– Sim. Mas olhava de maneira obscena.
O guarda perguntou, então, ao homem:
– Você olhava de maneira obscena?
– Sim. Não sei mentir. Mas qualquer um no meu lugar faria o mesmo. O senhor já viu ela andar?
O guarda viu depois, quando a mulher desistiu da prisão do seu espectador e foi andando. Não se deve explicar muito, mas é preciso que se diga: era uma moça brasileira. Uma moça de formato brasileiro, com movimentos brasileiríssimos. Dessas que deviam ter, como certos automóveis, uma tabuleta às costas, onde se lesse: “Amaciando”.

Antônio Maria

Pelada de subúrbio.

Nova Iguaçu, quatro horas da tarde, sábado de sol. Dois times suam a alma numa pelada barulhenta; o campo em que correm os dois times abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma ponte velha, um matagal e uma chácara silenciosa, de muros altos.
A bola, das brancas, é nova e rola como um presente a encher o grande vazio de vidas tão humildes que, formalmente divididas, na verdade, juntam-se para conquistar a liberdade na abstração de uma vitória.
Um chute errado manda a bola, pelos ares, lá nos limites da chácara, de onde é devolvida, sem demora, por um arremesso misterioso. Alguns minutos mais tarde, outra vez a bola foi cair nos terrenos da chácara, de onde voltou lançada com as duas mãos por um velhinho com jeito de caseiro.
Na terceira, a bola ficou por lá; ou melhor, veio, mas, cinco minutos depois, embaixo do braço de um homem gordo, cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura para cima. Era o dono da chácara.
A rapaziada, meio assustada, ficou na defensiva, olhando: ele entrou, foi andando para o centro do campo, pôs a bola no chão e, quando os dois times ameaçavam agradecer, com palmas e risos, o gesto do vizinho generoso, o homem tirou da cintura um revólver e disparou seis tiros na bola.
No campo, invadido pela sombra da morte, só ficou a bola, murcha.

Armando Nogueira

O anônimo

Presença da tragédia

Se alguém me matasse. Se eu fosse abatido a tiros por uma amante, pelo marido de uma de minhas amantes, por um neurótico pela fama, por um serial killer americano que tivesse vindo ao Brasil, pelo engano de um traficante, por um assaltante num cruzamento, por uma das milhares de balas perdidas que cruzam a cidade, por uma dessas motos enraivecidas que alucinam o transito, por um colega de profissão inconformado com a minha fama. Se morresse em uma inundação, atingido por um raio ou por uma árvore derrubada por um vendaval. Por um remédio com data vencida, por uma comida estragada. Uma tragédia noticiada por toda a mídia, alimentada e realimentada, provocando manchetes vorazes, devoradas com prazer pelo público e construindo a minha legenda. Melhor que fosse algo misterioso. O noticiário duraria mais tempo, o caso seria revisto por curiosos dispostos a desvendar enigmas. Provocar a necessidade de uma autopsia, de exumação. Ser o enigma do século seria a minha glória. Se eu tivesse essa certeza, não me incomodaria de estar morto.

Ignácio de Loyola Brandão

Adeus, doce França.

Volto hoje às minhas criaturas, aos rudes homens do cangaço, às mulheres, aos sertanejos castigados, às terras tostadas de sol e tintas de sangue, ao mundo fabuloso do meu romance, já no meio do caminho.
Os dias de França me deram uma sensação de pausa, de espanto, de novos contactos sonhados desde menino. Vi terras por onde andaram os doze pares de França, os heróis do meu Carlos Magno, lido e relido como história de Trancoso. Vi terras do sul, o mar Mediterrâneo, o mar da história, o mar dos gregos, dos egípcios, dos fenícios, dos romanos. Mas o nordestino tinha que voltar à sua realidade, à realidade maior que a história do mundo, isto é, à história dos seus homens, dos cangaceiros brutais, carregados de vida bárbara, de instintos cruéis de uma força, porém, que não se extingue nunca, porque é a energia de uma raça de homens mais duros do que as pedras dos seus lajedos.
Volto aos "Cangaceiros" e desde logo tudo o que vi e senti se refugia no fundo da sensibilidade, para que a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas novas enchem, outra vez, de correntezas.
Volto ao terrível Aparício que mata igual a um flagelo de Deus, ao monstruoso Negro Vicente, ao triste Bentinho, ao místico Domício, aos umbuzeiros carregados de frutos, aos mandacarus de floração de sangue, aos cantadores de estrada, às mulheres sofredoras, às noites de lua, aos tiroteios, ao crime e ao amor, à poesia barbaresca e vigorosa de um povo que é maior do que a terra que o criou.
Volto contente e disposto a tudo.
Adeus, doce França. Agora os espinhos me arranham o corpo e as tristezas me cortam a alma.

José Lins do Rego

 Frases de Agripino Grieco

01 - Mineiro dá bom dia porque bom dia volta logo. É a terra onde olho vê, mão tira e pé corre. Por isso dá tanto banqueiro lá. O que é o batedor de carteira senão um banqueiro apressado?

02 - O primeiro artigo sobre o Gilberto Freire quem escreveu fui eu. Casa Grande e Senzala é um livro bem pensado e mal escrito. Pensado na casa-grande e escrito na senzala.

03 - O Ataulfo de Paiva era tão medíocre, cabeça tão vazia, que quem comesse os miolos dele podia comungar.

04 - Em Campinas, um professor me saudou dizendo: – Desta cidade saíram muitos homens de talento. Aparteei: – Saíram todos. Ficaram furiosos comigo.

05 - Em Campos, acabei minha conferência dizendo: – O rio Paraíba passa por aqui e fica tão envergonhado que se joga no mar. Também não gostaram.

06 - Em Feira de Santana, no hotel, uma velha professora estava em prantos porque seu marido, um português, fugiu levando tudo dela. Perguntei-lhe: – A senhora, tanto tempo professora, e não conhecia o português?

Agripino Grieco

 36 homens justos.

Li que no Talmude existe a história dos 36 homens justos que salvam o mundo da destruição. Segundo a tradição mosaica, a cada momento determinado da História vivem na Terra 36 homens cuja retidão de caráter impede Deus de fechar a mão e nos aniquilar. Os 36 podem estar espalhados pelo planeta, não se conhecerem entre si e não conhecerem o seu próprio poder, mas sua existência e o seu comportamento decidem o nosso destino. Se não fosse pelos 36, Deus desistiria de nós. Por que 36? Não sei. Também não sei se há algum tipo de flexibilidade divina. Se Deus aceita, por exemplo, 35 éticos e um que, vá lá, passou a mão na empregada ou na caixa da firma, mas hoje está arrependido, ou se o Talmude esclarece esse ponto. O fato é que a simples sobrevivência da Humanidade, apesar de tudo que ela já aprontou, é prova de que há pelo menos 36 homens justos no mundo, neste momento. Deus os conhece. Deus os conta todos os dias. Mesmo quem não segue o Talmude só pode torcer para que esta conjunção mágica não se desfaça, que nunca faltem homens justos no mundo em número suficiente para evitar nossa destruição. O mesmo vale para o Congresso brasileiro: só a existência presumida de um mínimo de 36 exceções à mediocridade, à venalidade ou à canastrice explicaria que um raio ainda não tenha destruído as duas casas. Os presumidos 36 preservam a instituição e, mais importante, preservam nosso amor-próprio, pois maus congressos significam maus eleitores. Nenhum congressista brotou da sua cadeira, foram todos postos lá por um de nós, o povo. Os presumidos 36 nos redimem. Quem são eles? Deus os conhece. Deus os conta todos os dias.

Luís Fernando Veríssimo

Frases

Dos vendedores ambulantes que frequentavam a Rua da União, dois me interessavam particularmente: a preta das bananas, com o seu vistoso xale de pano da Costa, e o homem dos sapatos. Este chegava com o seu grande baú de folha-de-flandres, abria-o na saleta de entrada e ficava esperando pela freguesia, que eram as senhoras de casa e da vizinhança. Eu gostava de olhar aquela confusão de borzeguins, chinelas e sapatos rasos. Mas, um dia, o sujeito, que era robusto e falava grosso, me interpelou: – Já vai ao colégio? Estuda Geografia? Qual é a Capital do Espírito Santo?
Embatuquei, e o sapateiro tripudiou: – Ignora?
O que eu esperava, o que eu ouvia dizer em tais ocasiões era: – “Não sabe?” Aquele “ignora”, que eu jamais ouvira, soou-me duro. Senti-me insultado, afastei-me do baú, nunca mais me aproximei do homem. E até hoje implico com esse inocente verbo “ignorar”, sobretudo no singular do presente do indicativo.
Outro dia foi meu tio Antonico que me surpreendeu, dizendo ao amigo Fiúza:
– Quando você ia colher os cajus, eu já voltava com as castanhas!
Surpresa maior, porém, foi o que disse à minha avó unia sua amiga, ouvindo-lhe queixas de achaques que não cediam aos remédios: – Minha Dona França, deixe a natureza obrar!
Essas foram frases ouvidas na infância e então me soaram insólitas e inexplicáveis. Adulto, ouvi outras, sem nenhum mistério, mas igualmente surpreendentes. Assim, a de uma dessas pretinhas de Copacabana, cabelizadas e maquiladas, que tratava emprego com a senhora:
– A que horas a senhora janta?
– Às oito horas.
– Não pode ser às sete?
– Quem marca o horário das refeições em minha casa sou eu, não a cozinheira.
A pretinha então, muito gentil:
– Claro, não leve a mal que eu pergunte: não vê que eu sou mulher da vida e tenho de noite o meu trabalho lá fora?

Manuel Bandeira

Qualidades do professor


Se há uma criatura que tenha necessidade de formar e manter constantemente firme uma personalidade segura e complexa, essa é o professor.

Destinado a pôr-se em contato com a infância e a adolescência, nas suas mais várias e incoerentes modalidades, tendo de compreender as inquietações da criança e do jovem, para bem os orientar e satisfazer sua vida, deve ser também um contínuo aperfeiçoamento, uma concentração permanente de energias que sirvam de base e assegurem a sua possibilidade, variando sobre si mesmo, chegar a apreender cada fenômeno circunstante, conciliando todos os desacordos aparentes, todas as variações humanas nessa visão total indispensável aos educadores.

É, certamente, uma grande obra chegar a consolidar-se numa personalidade assim. Ser ao mesmo tempo um resultado – como todos somos – da época, do meio, da família, com características próprias, enérgicas, pessoais, e poder ser o que é cada aluno, descer à sua alma, feita de mil complexidades, também, para se poder pôr em contato com ela, e estimular-lhe o poder vital e a capacidade de evolução.

E ter o coração para se emocionar diante de cada temperamento.
E ter imaginação para sugerir.
E ter conhecimentos para enriquecer os caminhos transitados.

E saber ir e vir em redor desse mistério que existe em cada criatura, fornecendo-lhe cores luminosas para se definir, vibratilidades ardentes para se manifestar, força profunda para se erguer até o máximo, sem vacilações nem perigos. Saber ser poeta para inspirar. Quando a mocidade procura um rumo para a sua vida, leva consigo, no mais íntimo do peito, um exemplo guardado, que lhe serve de ideal.

Quantas vezes, entre esse ideal e o professor, se abrem enormes precipícios, de onde se originam os mais tristes desenganos e as dúvidas mais dolorosas!

Como seria admirável se o professor pudesse ser tão perfeito que constituísse, ele mesmo, o exemplo amado de seus alunos!

E, depois de ter vivido diante dos seus olhos, dirigindo uma classe, pudesse morar para sempre na sua vida, orientando-a e fortalecendo-a com a inesgotável fecundidade da sua recordação.

Cecília Meireles

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