O andar
(Dois desejos - por Seth)
Aconteceu na Avenida Copacabana,
esquina de Santa Clara. Uma jovem senhora chamou o guarda e apontou o homem,
encostado a um poste:
– Prenda este homem, que ele está se
portando inconvenientemente.
Era um homem magro, pálido,
vestido em casimira velhinha. Não tinha cara de gente má. Ao contrário, seus
olhos eram doces e mendigos.
O policial segurou o homem pela
lapela. O homem não se mexeu. Apenas levantou os olhos e perguntou:
– Por quê?
A senhora estava uma fúria e dizia
num fôlego só:
– Há uma hora este cidadão me segue.
Começou no lotação. Desceu quando eu desci. Entrei numa loja e ele entrou
também. Andei um quarteirão e ele andou também. Entrei no mercadinho e ele
entrou também...
– E lhe disse alguma coisa?
– Não. Só olhava.
O guarda soltou a lapela do homem. O
homem agradeceu. O guarda dirigiu-se ainda à mulher:
– Mas ele só olhava?
– Sim. Mas olhava de maneira obscena.
O guarda perguntou, então, ao homem:
– Você olhava de maneira obscena?
– Sim. Não sei mentir. Mas qualquer um
no meu lugar faria o mesmo. O senhor já viu ela andar?
O guarda viu depois, quando a mulher
desistiu da prisão do seu espectador e foi andando. Não se deve explicar muito,
mas é preciso que se diga: era uma moça brasileira. Uma moça de formato
brasileiro, com movimentos brasileiríssimos. Dessas que deviam ter, como certos
automóveis, uma tabuleta às costas, onde se lesse: “Amaciando”.
Antônio Maria
Pelada de subúrbio.
Nova Iguaçu, quatro horas da tarde,
sábado de sol. Dois times suam a alma numa pelada barulhenta; o campo em que
correm os dois times abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma
ponte velha, um matagal e uma chácara silenciosa, de muros altos.
A bola, das brancas, é nova e rola
como um presente a encher o grande vazio de vidas tão humildes que, formalmente
divididas, na verdade, juntam-se para conquistar a liberdade na abstração de
uma vitória.
Um chute errado manda a bola, pelos
ares, lá nos limites da chácara, de onde é devolvida, sem demora, por um
arremesso misterioso. Alguns minutos mais tarde, outra vez a bola foi cair nos
terrenos da chácara, de onde voltou lançada com as duas mãos por um velhinho
com jeito de caseiro.
Na terceira, a bola ficou por lá; ou
melhor, veio, mas, cinco minutos depois, embaixo do braço de um homem gordo,
cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura para cima. Era o dono da
chácara.
A rapaziada, meio assustada, ficou na
defensiva, olhando: ele entrou, foi andando para o centro do campo, pôs a bola
no chão e, quando os dois times ameaçavam agradecer, com palmas e risos, o
gesto do vizinho generoso, o homem tirou da cintura um revólver e disparou seis
tiros na bola.
No campo, invadido pela sombra da
morte, só ficou a bola, murcha.
Armando Nogueira
O anônimo
Presença da tragédia
Se alguém me matasse. Se eu fosse
abatido a tiros por uma amante, pelo marido de uma de minhas amantes, por um
neurótico pela fama, por um serial killer americano que tivesse vindo ao
Brasil, pelo engano de um traficante, por um assaltante num cruzamento, por uma
das milhares de balas perdidas que cruzam a cidade, por uma dessas motos
enraivecidas que alucinam o transito, por um colega de profissão inconformado
com a minha fama. Se morresse em uma inundação, atingido por um raio ou por uma
árvore derrubada por um vendaval. Por um remédio com data vencida, por uma
comida estragada. Uma tragédia noticiada por toda a mídia, alimentada e
realimentada, provocando manchetes vorazes, devoradas com prazer pelo público e
construindo a minha legenda. Melhor que fosse algo misterioso. O noticiário
duraria mais tempo, o caso seria revisto por curiosos dispostos a desvendar
enigmas. Provocar a necessidade de uma autopsia, de exumação. Ser o enigma do
século seria a minha glória. Se eu tivesse essa certeza, não me incomodaria de
estar morto.
Ignácio de Loyola Brandão
Adeus, doce França.
Volto hoje às minhas criaturas, aos
rudes homens do cangaço, às mulheres, aos sertanejos castigados, às terras
tostadas de sol e tintas de sangue, ao mundo fabuloso do meu romance, já no
meio do caminho.
Os dias de França me deram uma
sensação de pausa, de espanto, de novos contactos sonhados desde menino. Vi
terras por onde andaram os doze pares de França, os heróis do meu Carlos Magno,
lido e relido como história de Trancoso. Vi terras do sul, o mar Mediterrâneo,
o mar da história, o mar dos gregos, dos egípcios, dos fenícios, dos romanos.
Mas o nordestino tinha que voltar à sua realidade, à realidade maior que a
história do mundo, isto é, à história dos seus homens, dos cangaceiros brutais,
carregados de vida bárbara, de instintos cruéis de uma força, porém, que não se
extingue nunca, porque é a energia de uma raça de homens mais duros do que as
pedras dos seus lajedos.
Volto aos "Cangaceiros" e
desde logo tudo o que vi e senti se refugia no fundo da sensibilidade, para que
a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas
novas enchem, outra vez, de correntezas.
Volto ao terrível Aparício que mata
igual a um flagelo de Deus, ao monstruoso Negro Vicente, ao triste Bentinho, ao
místico Domício, aos umbuzeiros carregados de frutos, aos mandacarus de
floração de sangue, aos cantadores de estrada, às mulheres sofredoras, às
noites de lua, aos tiroteios, ao crime e ao amor, à poesia barbaresca e
vigorosa de um povo que é maior do que a terra que o criou.
Volto contente e disposto a tudo.
Adeus, doce França. Agora os espinhos
me arranham o corpo e as tristezas me cortam a alma.
José Lins do Rego
01 - Mineiro dá bom dia porque bom
dia volta logo. É a terra onde olho vê, mão tira e pé corre. Por isso dá tanto
banqueiro lá. O que é o batedor de carteira senão um banqueiro apressado?
02 - O primeiro artigo sobre o Gilberto
Freire quem escreveu fui eu. Casa Grande e Senzala é um livro bem pensado e mal
escrito. Pensado na casa-grande e escrito na senzala.
03 - O Ataulfo de Paiva era tão
medíocre, cabeça tão vazia, que quem comesse os miolos dele podia comungar.
04 - Em Campinas, um professor me
saudou dizendo: – Desta cidade saíram muitos homens de talento. Aparteei: –
Saíram todos. Ficaram furiosos comigo.
05 - Em Campos, acabei minha
conferência dizendo: – O rio Paraíba passa por aqui e fica tão envergonhado que
se joga no mar. Também não gostaram.
06 - Em Feira de Santana, no hotel,
uma velha professora estava em prantos porque seu marido, um português, fugiu
levando tudo dela. Perguntei-lhe: – A senhora, tanto tempo professora, e não
conhecia o português?
Agripino Grieco
Li que no Talmude existe a história
dos 36 homens justos que salvam o mundo da destruição. Segundo a tradição
mosaica, a cada momento determinado da História vivem na Terra 36 homens cuja
retidão de caráter impede Deus de fechar a mão e nos aniquilar. Os 36 podem
estar espalhados pelo planeta, não se conhecerem entre si e não conhecerem o
seu próprio poder, mas sua existência e o seu comportamento decidem o nosso
destino. Se não fosse pelos 36, Deus desistiria de nós. Por que 36? Não sei.
Também não sei se há algum tipo de flexibilidade divina. Se Deus aceita, por
exemplo, 35 éticos e um que, vá lá, passou a mão na empregada ou na caixa da
firma, mas hoje está arrependido, ou se o Talmude esclarece esse ponto. O fato
é que a simples sobrevivência da Humanidade, apesar de tudo que ela já
aprontou, é prova de que há pelo menos 36 homens justos no mundo, neste
momento. Deus os conhece. Deus os conta todos os dias. Mesmo quem não segue o
Talmude só pode torcer para que esta conjunção mágica não se desfaça, que nunca
faltem homens justos no mundo em número suficiente para evitar nossa
destruição. O mesmo vale para o Congresso brasileiro: só a existência presumida
de um mínimo de 36 exceções à mediocridade, à venalidade ou à canastrice
explicaria que um raio ainda não tenha destruído as duas casas. Os presumidos
36 preservam a instituição e, mais importante, preservam nosso amor-próprio,
pois maus congressos significam maus eleitores. Nenhum congressista brotou da
sua cadeira, foram todos postos lá por um de nós, o povo. Os presumidos 36 nos
redimem. Quem são eles? Deus os conhece. Deus os conta todos os dias.
Luís Fernando
Veríssimo
Frases
Dos vendedores ambulantes que frequentavam
a Rua da União, dois me interessavam particularmente: a preta das bananas, com
o seu vistoso xale de pano da Costa, e o homem dos sapatos. Este chegava com o
seu grande baú de folha-de-flandres, abria-o na saleta de entrada e ficava
esperando pela freguesia, que eram as senhoras de casa e da vizinhança. Eu
gostava de olhar aquela confusão de borzeguins, chinelas e sapatos rasos. Mas,
um dia, o sujeito, que era robusto e falava grosso, me interpelou: – Já vai ao
colégio? Estuda Geografia? Qual é a Capital do Espírito Santo?
Embatuquei, e o sapateiro tripudiou: –
Ignora?
O que eu esperava, o que eu ouvia
dizer em tais ocasiões era: – “Não sabe?” Aquele “ignora”, que eu jamais
ouvira, soou-me duro. Senti-me insultado, afastei-me do baú, nunca mais me
aproximei do homem. E até hoje implico com esse inocente verbo “ignorar”,
sobretudo no singular do presente do indicativo.
Outro dia foi meu tio Antonico que me
surpreendeu, dizendo ao amigo Fiúza:
– Quando você ia colher os cajus, eu
já voltava com as castanhas!
Surpresa maior, porém, foi o que
disse à minha avó unia sua amiga, ouvindo-lhe queixas de achaques que não
cediam aos remédios: – Minha Dona França, deixe a natureza obrar!
Essas foram frases ouvidas na
infância e então me soaram insólitas e inexplicáveis. Adulto, ouvi outras, sem
nenhum mistério, mas igualmente surpreendentes. Assim, a de uma dessas
pretinhas de Copacabana, cabelizadas e maquiladas, que tratava emprego com a
senhora:
– A que horas a senhora janta?
– Às oito horas.
– Não pode ser às sete?
– Quem marca o horário das refeições
em minha casa sou eu, não a cozinheira.
A pretinha então, muito gentil:
– Claro, não leve a mal que eu
pergunte: não vê que eu sou mulher da vida e tenho de noite o meu trabalho lá
fora?
Manuel Bandeira
Qualidades do professor
Se há uma criatura que tenha
necessidade de formar e manter constantemente firme uma personalidade segura e
complexa, essa é o professor.
Destinado a pôr-se em contato com a
infância e a adolescência, nas suas mais várias e incoerentes modalidades,
tendo de compreender as inquietações da criança e do jovem, para bem os
orientar e satisfazer sua vida, deve ser também um contínuo aperfeiçoamento,
uma concentração permanente de energias que sirvam de base e assegurem a sua
possibilidade, variando sobre si mesmo, chegar a apreender cada fenômeno
circunstante, conciliando todos os desacordos aparentes, todas as variações
humanas nessa visão total indispensável aos educadores.
É, certamente, uma grande obra chegar
a consolidar-se numa personalidade assim. Ser ao mesmo tempo um resultado –
como todos somos – da época, do meio, da família, com características próprias,
enérgicas, pessoais, e poder ser o que é cada aluno, descer à sua alma, feita
de mil complexidades, também, para se poder pôr em contato com ela, e
estimular-lhe o poder vital e a capacidade de evolução.
E ter o coração para se emocionar
diante de cada temperamento.
E ter imaginação para sugerir.
E ter conhecimentos para enriquecer
os caminhos transitados.
E saber ir e vir em redor desse mistério que existe em cada criatura, fornecendo-lhe cores luminosas para se definir, vibratilidades ardentes para se manifestar, força profunda para se erguer até o máximo, sem vacilações nem perigos. Saber ser poeta para inspirar. Quando a mocidade procura um rumo para a sua vida, leva consigo, no mais íntimo do peito, um exemplo guardado, que lhe serve de ideal.
Quantas vezes, entre esse ideal e o professor, se abrem enormes precipícios, de onde se originam os mais tristes desenganos e as dúvidas mais dolorosas!
Como seria admirável se o professor pudesse ser tão perfeito que constituísse, ele mesmo, o exemplo amado de seus alunos!
E, depois de ter vivido diante dos seus olhos, dirigindo uma classe, pudesse morar para sempre na sua vida, orientando-a e fortalecendo-a com a inesgotável fecundidade da sua recordação.
Cecília Meireles
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